Sexuados/assexuados em Veneza
A propósito da Sally Field, meu particular ódio de estimação também, lembrei-me de outra coisa. Que a sensualidade não tem nada a ver com ser-se bonito já toda a gente sabe (duas palavrinhas: Gina Gershon, e não digo mais). Não é, pois, por aí. Existem contudo alguns actores muito bonitos que são singularmente desprovidos de sex-appeal, por exemplo Peter O'Toole (a cara perfeita; a cara – e os olhos – de Deus), Jude Law (sucessor de Peter O'Toole no cargo de cara de Deus) ou Meryl Streep (que Meryl can't strip mostra-o o recente remake do «Candidato da Manchúria»). Depois há os actores assim-assim de bonitos, embora igualmente com a coisa sensual desligada, rasurada: Sally Field, Dustin Hoffmann, Timothy Dalton. Não será por acaso que me ocorrem mais nomes de actores do que de actrizes. Aparentemente, é mais difícil a uma mulher actriz fazer carreira se não for sensual (mais do que se não for bonita) do que a um homem actor. Sem querer fazer (mas fazendo) psicologia barata do mundo contemporâneo, ser sensual e atraente (qualquer que seja o obscuro objecto de desejo), dominar a, ia a dizer economia da, sedução (demand side e supply side) é obviamente uma carreira, e um quase seguro da Médis.
Isto vinha a propósito da sequência de Bjorn Andresen/Tadzio. Aschenbach queria salvar Tadzio. Da decadência, dos miasmas da cidade, do envelhecimento, da loucura (veja-se a assustadora sequência da trupe de palhaços), dele próprio (daquilo em que se havia tornado: desejo, doença e morte) porque o imaginava indefinidamente virgem, incólume e puro. O único momento em que lhe toca, e só com a ponta do dedo (de resto, as mãos estão sempre atrás das costas), é para avisá-lo de que se deve ir embora, salvar-se com urgência. Em Tadzio, para além da sensualidade do olhar e da postura, ressalta uma pureza de neve suja, uma perversão insinuante e fininha, captada melhor, superiormente, no fotograma da audição. Tadzio, suspeito, como Aschenbach não pode salvar-se da sujidão fugindo porque ele póprio, ambos os fotogramas o mostram, não é puro. É louro e angelical, mas é humano. Como – exactamente como – Veneza. Porque ninguém é puro? Porque isso da salvação não existe? Porque a redenção é como um mútuo a 35 anos com o spread muito alto? Porque a santidade, perfeita, solar e redonda, queima e não é, por isso, humana, nem para os humanos?
Rui Branco
Isto vinha a propósito da sequência de Bjorn Andresen/Tadzio. Aschenbach queria salvar Tadzio. Da decadência, dos miasmas da cidade, do envelhecimento, da loucura (veja-se a assustadora sequência da trupe de palhaços), dele próprio (daquilo em que se havia tornado: desejo, doença e morte) porque o imaginava indefinidamente virgem, incólume e puro. O único momento em que lhe toca, e só com a ponta do dedo (de resto, as mãos estão sempre atrás das costas), é para avisá-lo de que se deve ir embora, salvar-se com urgência. Em Tadzio, para além da sensualidade do olhar e da postura, ressalta uma pureza de neve suja, uma perversão insinuante e fininha, captada melhor, superiormente, no fotograma da audição. Tadzio, suspeito, como Aschenbach não pode salvar-se da sujidão fugindo porque ele póprio, ambos os fotogramas o mostram, não é puro. É louro e angelical, mas é humano. Como – exactamente como – Veneza. Porque ninguém é puro? Porque isso da salvação não existe? Porque a redenção é como um mútuo a 35 anos com o spread muito alto? Porque a santidade, perfeita, solar e redonda, queima e não é, por isso, humana, nem para os humanos?
Rui Branco
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