O oitavo lado

O discurso de Stalin no Congresso do Partido em 1934 foi editado em vinil. Ocupava oito lados, quatro discos, portanto. O oitavo lado continha exclusivamente o prolongado e ruidoso aplauso. Poucos meses depois, num discurso por ocasião de uma mudança de conselho directivo de uma escola, o novo director, a concluir, elogiou o camarada Stalin. A parede de aplauso envolveu de imediato a sala. No Congresso de 1934, fora o próprio Stalin que, mostrando as palmas, mandou parar o aplauso. Como saber quando parar, se Stalin não estava? O aplauso continuou, três, cinco, dez minutos. Alguns, voltaram a sentar-se nas cadeiras, aplaudindo sempre. O aplauso continuou, por medo de se ser o primeiro a parar, por medo das consequências, por medo. Quinze minutos. Os primeiros desmaios. Meia hora: o primeiro a parar foi um professor de geografia. Não estou seguro se parou por um acto volitivo de coragem, se por mero cansaço. Não que qualquer das opções fosse, obviamente, aceitável. Era irrelevante. Foi deportado no dia seguinte.
O programa «Esquadrão G» constitui um bom exemplo disto mesmo. Sobre este programa, já escrevi aqui o que penso – e penso o pior possível. Mas estava curioso com as reacções, nomeadamente com as das associações gay, como Os Panteras Rosas, a Ilga, e o Opus Gay. Em geral, assobiaram para o ar. Que saiba, nenhuma condenou sem concessões o programa (a única reacção honrada e decorosa). Mesmo manifestando em privado o seu desacordo, alguém disse, «muita gente não protesta porque eles são muito importantes na noite gay», não podendo, por essa razão cor de neve suja, ser hostilizados. Estamos conversados, pensei.
O maior abismo em que o exercício da crítica pode cair é portanto este, o do oitavo lado do vinil, o do terror íntimo de parar de aplaudir. Não necessariamente por acriticismo, mas por medo. No Congresso, o Príncipe (não era Leopold, desta feita), estava presente e deu a deixa. Na escola, a acção do poder tirânico dispensava já a presença física do Príncipe, funcionando por dentro das pessoas como um sem-fim mecânico de uma violência doce. Quero dizer, de forma «espontânea», a única forma de espontaneidade que este Príncipe apreciava e que, por isso, não retribuía com a morte. Príncipes há e houve muitos, cá e lá, antes e depois: Leopoldo, o Estado, o Partido, o Mercado, a «Noite Gay». A liberdade é como a luz. Sem ela, o crítico, o cidadão, o ser humano será sempre um cego liderando cegos.
Rui Branco

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