sair a meio do filme iii

O post do Rui (abaixo) recordou-me um daqueles acontecimentos que, creio, andava há anos a tentar esquecer - obrigadinho...
Pois, eu sou um purista destas coisas. Fico sempre até ao fim. Nunca deixei um livro a meio e, até ao ano 2000, também nunca tinha abandonado uma sala de cinema no decurso da sessão.
Ao contrário dessa tese segundo a qual se vê logo a qualidade ou a falta dela de um filme nos primeiros cinco minutos, sempre acreditei precisamente no oposto: os finais é que dizem tudo. Há muito, mesmo muito, muito filme e livro que se está a sair lindamente e, de repente, ao avistar a praia, se estatela no chão, ou melhor, no fundo do oceano. Do mesmo modo, do lado oposto, há muita obra que passa o tempo todo quase, quase a afogar-se e, subitamente, ao vislumbrar a salvação, arranca um verdadeiro sprint olímpico.
No fundo, estamos apenas a falar de esperança e desconfiança - o final tem de confirmar uma das emoções com que recebemos e interpretamos uma obra de arte.
É claro que, amiúde, nada disto acontece e, de facto, o bom filme e o bom livro são bons do princípio ao fim e o mau filme e o mau livro não chegam, em momento algum, a ter ponta por onde se lhes pegue. Mas eu fazia gala nisto - chamem-me masoquista - resistiria, solenemente, até ao último fôlego de cada desafio.
E eis que chegamos a 2000, um ano difícil. Ainda mal refeito do visionamento de O Anjo da Guarda, de Margarida Gil (em que não cedera ao ímpeto orgânico apenas porque vira o nome de uma amiga nos créditos iniciais e desesperei, até à penúltima cena, para a ver; depois, foi só aguentar mais um bocadinho), entrei noutra sala para assistir a O Rei das Rosas, de Werner Schroeter. O cartaz era bonito, como se vê ao lado, o título também, havia sido rodado, em grande parte em Portugal: havia motivos de interesse.
Pausa para a sinopse do filme: uma mulher esfrega alcatrão na cara; uma jarra de flores; o corpo de um tipo nu, estendido na areia, levando com a espuma das ondas; galinhas esfoladas penduradas pelas patas dentro de um barracão; um grupinho de crianças de Sintra e do Montijo expressam-se com menos naturalidade do que o Keanu Reeves; uma alemã esforça-se por falar Português pior que o Bobby Robson nos seus tempos de FCP; de novo, a mulher esfrega alcatrão na cara; o gajo nu na praia; a jarra de flores; as galinhas esfoladas; as crianças do Montijo; alcatrão na cara; flores; galinhas; tipo da praia; criancinhas; alemã fala Português; and again and again and again...
Não deu. Juro. A cerca de 15 minutos do final - vim a saber que só faltavam mais 15 fugazes minutos - fugi. Morava, então, próximo do cinema (King) e fui a correr para casa. Creio que ainda terei gritado: "Mããeeee! Ó mããããeeeeeee!!"
Devia ter percebido logo porque é o que um filme produzido em 1986 só tinha visto a luz do dia 14 anos depois...
Mais tarde, em 2002 ou 2003, já não fui na cantiga: estreva Deux, do mesmo Werner Schroeter, e o pessoal queria acorrer às salas porque a protagonista respondia pelo nome de Isabelle Huppert e ainda andava tudo entusiasmado com A Pianista. Eu, recorrendo ao meu mais científico vocabulário técnico, disse: "Não vão ver essa merda."
Muitos foram. Agora, telefonam-se sempre antes de tomar qualquer decisão mais complexa que escolher a camisola azul ou a encarnada.
Alexandre Borges

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