no escurinho do cinema

Ultimamente ando mais obcecado com o Tempo do que alguma vez antes. A explicação, que é aqui o menos importante, é simples: tenho menos tempo do que alguma vez antes. Isse mete um gajo a pensar. Pelo menos gosto de pensar que sim. Bem, eu pelo menos farto-me de pensar nisso - o que ainda me toma mais tempo. A verdade é que há vidas agitadas para quem as imposições do cinema são um exotismo que há muito deixou de ser alcançável. As duas horas de película a rodar, a ausência de intervalos ou impossibilidade de carregar no "pause", as deslocações a um multiplex (um Cinema é já uma realidade desconhecida) são tudo constrições impossíveis para quem mora nos subúrbios, chega a casa tarde e cansado, depois de horas no trânsito ou nos aconchegantes transportes públicos. Depois, há, claro, o DVD. O DVD e o apartamento de 30 mil contos, que se estará a pagar até à reforma, são uma das mais fantásticas combinações já inventadas pelo moderno capitalismo. Assentam na perfeição, como uma jovem loira platinada e um empreiteiro da construção civil com um Mercedes SL 350. O conforto do lar a total manipulação do objecto cinematográfico, a televisão LCD ou Plasma, em proporções generosas, a casa de banho mesmo ali ao lado, o Jameson, Glenlivet ou outro à escolha de Miguel Esteves Cardoso. Enfim, que se lixe o cinema. Lixanço duplo, porque se lixa a Arte e o Espaço. Para os puristas, de que sou um exemplo irritante, o BETA, o VHS, o DVD são sub-produtos do cinema (valia a pena um texto sobre esse interessante género: o telefilme). Não são cinema. O cinema é película, é tela, é uma viagem, um local. O cinema é um estado de espírito. Esse estado de espírito, que fique bem claro não pode ser recriado em casa, a não ser que tenhamos uma herdade no Alentejo ou uma ilha na Suécia. Por muito que queiramos o Cinema está contra o Lar. A expressão cinema em casa é a coisa mais cretina e contraditória que já foi inventada. Há também quem diga que a masturbação é sexo, por isso penso que não vale a pena uma discussão prolongada sobre este tema. Mas ainda a propósito: não é muito mais interessante sexo no cinema do que sexo em casa? Penso que a resposta dada a esta pergunta separará os que me compreendem dos que nunca me irão perceber.

Depois há o Espaço. Que, aliás, explica a Arte. O cinema implica um processo. Pode ser um processo longo e moroso ou um rápido processo de choque. Podemos combinar uma estreia com um mês de antecedência, comprar os bilhetes duas semanas antes, ler e reler páginas de internet, partilhar a ansiedade antecipatória e depois desaguar para o clímax do ecrã. Ou então, e voltemos para onde vos queria levar, podemos ir contra o Tempo, desafiar a Agenda. Às vezes ao fim do dia, a voltar de uma reunião, pago o preço de um noite mais longa a trabalhar e meto-me no cinema. Literalmente. Entro pelo espaço dentro, tantas e tantas vezes ao acaso dos filmes. O que quero é desaparecer da cidade, tornar o meu anonimato negro e saber que tenho a próxima hora e meia para mim. Nada entre o meu espírito e a tela. Por vezes até dá jeito que o filme não prenda. A mente vai viajando pelo que a preocupa, de vez a vez regressamos a uma fala, a uma cena. O que fica é o Espaço, o Edifício, a Habitabilidade. Tema a que irei regressar, pois é longa conversa.

O cinema é uma amante exigente. Por muito que a tentemos domar, vulgarizar, misturar com centros comerciais, sofás, pipocas e afins o Cinema resiste. Tem que resistir. A paixão que ela desperta pode muito bem ser um dos únicos sortilégios que temos para moldar o Tempo. Ou para fingirmos que ainda temos 15 anos, que a escola já acabou, que a tarde e a noite são nossas e o Cinema é aquilo que quisermos.
Domingos Miguel

Comentários

RitaNeves disse…
Tao bem dito :)

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