shyamalan, agora também para crianças



Para que serve o cinema? Como tudo quanto é arte e, portanto, não utilitário, não electrodoméstico, tudo quanto, enfim, dispense instruções de montagem e manual para um máximo rendimento, serve para tudo aquilo que o observador deseje. Um micro-ondas é um micro-ondas. Uma estante do Ikea uma estante do Ikea. A bateria dum automóvel a bateria dum automóvel. Uma rosa, é sabido, é uma rosa é uma rosa é uma rosa. Mas um quadro, um romance, um poema, uma ária, um canto, podem encher paredes dum sótão esconso e ser bandeiras de esperança a meio dum cenário de horror. Uma grande canção pode servir para encobrir o mau gosto da comida quando passada no sistema de som do restaurante e dar vontade de morrer e de continuar vivo. Uma estátua pode ser uma imensa pedra lascada e polida e ascender, a meio da praça, a símbolo eterno de uma revolução.
Assim é o cinema. Há quem o prefira pela escuridão, para ganhar coragem de tocar quem, à luz, apenas deseja. Há quem o use como mero passatempo, algures entre a digestão e o sono. Um prelúdio dos copos. Um passeio no parque. Uma ocupação para as noites de chuva. Uma ocasião para pensar. Uma oportunidade para a filosofia que não se teve paciência de sentar a ler e a escrever. Uma coisa irrelevante. O ganha-pão dos críticos, que, doutro modo, teriam de ser funcionários públicos. Nada disto. Outra coisa qualquer.
No entanto, a dimensão do sonho, a capacidade de fazer o espectador levantar-se do chão, o entretimento, na acepção mais terrena do sentido, seria, muito provavelmente, a opção mais votada, se corrêssemos agora, os transeuntes da Rua Augusta, num desses inquéritos típicos de jornal, mas com a possibilidade sensata das respostas serem dadas de cruz.
É esse, julgo, o charme maior de M. Night Shyamalan. Como, de resto e por exemplo, o de Tim Burton: o impulso natural para o sonho.
Não é a densidade das personagens nem o drama humano; já não é, seguramente, o efeito-surpresa dos twists finais de The Sixth Sense e Unbreakable; não é tanto para nos pôr a pensar, mas fazer sentir; não é, seguramente, a verosimilhança nem a fantasia total, nem o humor, nem o terror, nem. É o sonho, incluindo a quota pertencente aos pesadelos. A obsessão com o medo e a salvação, atravessada a meio pelo desejo de segurança. Pelo menos, até aqui.
Esse ímpeto de Shyamalan parece, no entanto, caminhar numa direcção cada vez mais nítida: não é o onírico de Spielberg que quer fazer sonhar toda a gente; é o dele próprio, Shyamalan, embrulhado na esperança de que o maior número de pessoas possível o reconheça e queira partilhar.
Em grande parte, isso está conseguido, ou não fosse ele um dos raríssimos directores com direito concedido pelos estúdios a assinar, desde Signs, o seu próprio nome no título das películas: M. Night Shyamalan’s. Como Coppola ou John Carpenter. Ou, a seu tempo, Hitchcock. Por outro lado, contudo, esse sonho arrisca-se, pelo que se vislumbra em Lady In The Water, a cirandar um remoinho que termina no seu próprio umbigo.
Podemos tratar Lady In The Water de várias formas: a uns, sabe-lhes ao filme mais simplista de Shyamalan; a outros, como ao presente escriba, ao mais bizarro; uns e outros poderão, provavelmente, concordar que se trata do primeiro filme infantil do indiano. Uns deram-lhe cinco estrelas e outros nenhuma, mas isso já não é novidade. Em qualquer dos casos e como, nesta página, impera uma ditadura, declaremo-lo como o pior filme de Shyamalan. Mas calma. O pior filme de Shyamalan continua a ser melhor que todo o cartaz anual oferecido por um Centro Comercial Colombo ou Vasco da Gama. Por isso, se ainda há quem leia críticas para decidir se deve ir ver o filme autopsiado, a resposta é: sim, deve. De que é que está à espera?
Lady In The Water fala de como uma narf, a irmã gémea das ninfas (aliás, não se percebe por que tem outro nome), desagua na piscina dum condomínio de apartamentos de classe média-baixa. A narf, Bryce Dallas Howard, tem uma missão a cumprir e, para tal, vai contar, num primeiro momento, com a ajuda pronta (demasiado pronta) do zelador do edifício, Paul Giamatti e, num segundo, com a de todos (quase todos) os moradores. Ah! Esta ajuda não é pronta; é imediata, instantânea, sem piscar os olhos por uma vez que seja.
A história terá nascido de um conto espontâneo do próprio Shyamalan para bem do sono da filha e é, digamos, bonita. O filme recria esse embalo e leva-o ao espectador. Giamatti é, pelo menos, óptimo; Bryce faz bem de narf, ainda que não tenhamos termo de comparação; Jeffrey Wright é sempre Jeffrey Wright, um estupendo actor que merece, há muito, papéis grandes em filmes grandes e não apenas papéis grandes em filmes pequenos e papéis pequenos em filmes grandes. A realização é, permanentemente, inventiva e cómica, mas fiel à imagem de marca do director, com aparições inesperadas a inquietar os espectadores nas cadeiras. Mas as personagens são ligeiras; o modo como toda aquela gente supostamente humana e real adere a uma lenga-lenga sobrenatural perfeitamente inexplicável; e, sobretudo, as causas são, quando comparadas com as consequências, irrisórias. Isto é, e não querendo revelar demasiado, a missão da narf é cumprida numa cena que talvez não atinja um minuto de duração; o resto do filme é a aventura épica de fazê-la regressar ao seu Mundo Azul. Pior: a missão da senhora e, no fundo, móbil de toda a narrativa, parece, sublinhe-se, parece, um tremendo exercício de onanismo da parte de Shyamalan.
Mas há uma coisa que irrita verdadeiramente em Lady In The Water: continuar, apesar de tudo isto, a ser um belo serão de cinema. E há lá um momento em que se mata um crítico de cinema, o que é sempre uma boa noticia.
AB

texto publicado na Atlântico nº 19

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