Há filmes sobre os quais só se pode escrever antes

Lembro-me perfeitamente do dia em que fui ver os Ossos de Pedro Costa. Algumas horas antes jantei, atabalhoadamente, pizza. Com três amigos. Depois, seguimos a pé, incautos, até ao cinema. Pagámos, alegremente, o bilhete e entrámos. Aí fomos espancados, torturados, moída a alma até se fazer em fino grão. E daí, então, começar tudo de novo. Ninguém nos havia preparado para aquilo. Não tinhamos falado com o Zé Manel o suficiente, não tinhamos lido jornais (de que, aliás, então como agora, descríamos). Tinhamos ido. Simplesmente.

A nós aquele filme dizia qualquer coisa mais. Todos morávamos em Benfica ou perto. As Fontainhas eram uma realidade próxima. Mesmo vivendo para além dela, muito para além dela, conheciamo-la. Não podíamos passar por aquele filme incólumes, remetendo para a ficção aquele bairro, aquelas gentes, aquelas vida. Nós sabíamos que as Fontainhas existiam, onde eram. Só não sabíamos aquilo. E aquilo são os Ossos de Pedro Costa. Um filme em que a ficção é muito mais real que a realidade. Uma hiper-realidade.

E esta hiper-qualidade é-o duplamente. É enquanto técnica cinematográfica que qualifica a realidade sobre a qual recai: a técnica de Pedro Costa é irrepreensível, apetecendo falar de um virtuosismo do olhar, da mão, da câmara que contrasta violentamente com o olhado, o dirigido, o filmado. Mas é também uma qualidade no sentido coloquial de bondade. Pedro Costa filma bem, a sua filmologia não se limita a qualificar o real, agudiza-o.

Ainda não fui ver a Juventude em Marcha, que ontem estreou. E não preciso de ir vê-lo para escrever. E até prudente que o não tenha feito. Críticos do Público, por exemplo, deram-lhe 5 estrelas. E homem está vivo, reparem bem. Pode ser assustador. Daí que qualquer texto que escreva sobre este filme de Pedro Costa, sobre a experiência que tivesse tido desta obra, poderia sempre ser algo parecido com as loas que se tecem sobre Pedro Costa. Mais uma vez. E eu não quero isso. Não tanto para ser do contra (mas que bem que sabe, por vezes) mas porque o que me agrada em Pedro Costa está lá desde que com ele me encontrei nos Ossos. Depois, No quarto da Vanda. E, creio-o muito, lá estará igualmente na Juventude em Marcha. Mesmo com a batota de já saber que, de novo, regressa às Fontainhas. De onde, aliás, nunca mais saiu.

Pedro Costa descobriu uma forma de nunca saindo do seu cinema, do seu bairro, andar pelo mundo inteiro. Isso é obra.
DM

Comentários

Pedro Leitão disse…
Não vi o ossos mas já vi várias vezes o no quarto da vanda, só que ainda n percebi uma coisa porque leio uma coisa e depois dizem-me outra...a vanda duarte que entra em Ossos e a que entra No quarto da Vanda é a mesma?É que li que a Vanda Duarte em ossos, ou no final do filme, passo a citar - desafiou o Pedro COsta a filmá-la "com menos cinema" nascendo depois o no quarto da vanda - ...agora, como é que uma toxicodependente, que está mergulhada naquele mundo à anos tem cabeça para fazer uma proposta destas!?Partindo do princípio que a história contada em no quarto da vanda é mesmo real...

se tivesse visto o ossos não teria esta dúvida secalhar, não sei...se me puderem ajudar!Obrigado!
Hugo disse…
De facto, é mais fácil escrever antes. Depois do ver as desventuras de Ventura fica-se sem palavras. É o melhor filme do ano e faz algo difícil: suplanta Ossos e No quarto da Vanda.

Pedro Costa é "só" um dos melhores realizadores no activo a nível mundial. E ninguém filma como ele estes vencidos da vida, destroços à deriva num mar de indiferença e solidão.
noite americana disse…
Caro PL, é realmente a mesma Vanda. Embora o olhar de Pedro Costa se exprima de formas diferentes nos dois filmes é ainda um mesmo olhar, sobre (neste caso) a mesma pessoa. Que prossegue na Juventude em Marcha. Um abraço. DM

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