Partir, despedaçar e seguir

Antes de mais uma palavra de contrição: aconteceu de novo, concordo com todas as palavras de Luís Miguel Oliveira sobre Juventude em Marcha*. É uma crítica admirável a um filme que desafia (no mais amplo sentido da palavra) a crítica. Não se admirem, pois, que algumas das ideias que para mim são essencias neste último filme de Pedro Costa estejam já abordadas por LMO, em texto que acabo agora de ler.

Devo dizer-vos que não comecei bem. Quase ia adormecendo ao primeiro quarto de hora de filme. Mas, reparem, anteontem adormeci realmente no intervalo de um Benfica-Sporting em PES6. Felizmente os meus amigos acordaram-me (estavam a jogar comigo) ou teria ficado a dormir na sala, vestido e sentado. Esta breve nota serve para introduzir o ritmo da Juventude em Marca: lento, lentíssimo. Esta é a nota do tempo. De um tempo que se dá bem com esta lentidão pois é, toda a medida, não só o ritmo normal das gentes das Fontainhas, com uma vida que passa lenta, por eles; mas é, sobretudo o ritmo de Ventura, fabuloso personagem (?) principal que se viaja pelo seu bairro moribundo, atrasando o seu fim.

Mas se este é o Tempo de Juventude em Marcha, igualmente fabuloso é o seu Espaço. Um espaço sufocante e claustrofóbico. Pedro Costa leva ao limite (creio que talvez até o ultrapasse) os campos fixos, com enquadramentos próximos, em cima das personagens. E não se trata apenas de querer garantir que o seu cinema é a sobretradução, a exagerada mimetização do mundo por onde Costa e as suas personagens se movem, ele mesmo sinuoso, apertado. É mais do que isso. São as pessoas mesmas que assim são. E isso Costa demonstra-o de forma sublime quando mantém os mesmos planos opressores ao filmar o novo apartamento de Vanda ou qualquer outra cena fora das Fontainhas. É impossível encontrar em Juventude em Marcha um plano amplo, aberto. Não tanto porque o filme se concentre nas Fontainhas (embora seja, claramente, o seu centro emocional) mas porque as pessoas, à custa de aí viverem ou terem vivido, são como o Bairro. Estão como o Bairro: apertadas, sinuosas, habituadas à escuridão mesmo se já vivem com o exagero da luz, como Vanda no seu novo apartamento. Mesmo se o Bairro está a perder-se, a acabar.

Digo as personagens de Pedro Costa e insatisfaço-me. Mas mantenho-me. Apesar de não serem actores (com a excepção de Gustavo Sumpta) os homens e as mulheres da Juventude em Marcha são personagens. Isto porque Pedro Costa, que filma na fronteira do documentário, neste filme vai para além do seu próprio cinema, utiliza-o para exagerar a realidade. Nas suas mãos as Fontainhas não se traduzem como um documentário do seu olhar, mas como um filme sobre o exagero das Fontainhas, as super-pessoas que lá habitam ou habitavam. Aliás, percebe-se o fascínio da câmara de Pedro Costa pelos seus homens e mulheres, erigidos a personagens. Especialmente, Ventura.

E quem é Ventura? O pai de Vanda e de tantos outras e outros que o filme nos vai revelando. Ajuda ter visto os dois filmes fontainhos de Costa mas não é decisivo. Do que se trata aqui é de um Odisseia paradoxal, do périplo de um homem que, nos entretantos da mudança de Bairro, se demora em visitas aos filhos e aos locais por onde a sua vida pode ainda passar. Por vezes Ventura estende-nos um mão para nos ajudar, na perdição em que nos encontramos, fingindo dar-nos alguma convencionalidade, falando de coisas que compreendemos, dos empregos que teve, do que fez e de gostaria de ter feito. E esses momentos tornam ainda mais magníficos os momentos ternos e violentos em que Costa se entrega ao onírico, ao irracional, ao apaixonado: os solilóquios do Lento, sobre o 25 de Abril, a carta rememorada por Ventura.

É fácil odiar este filme. E ontem no Nimas a porta da sala, batendo de tempos a tempos, confirmava isso mesmo. O Tempo e o Espaço são estranhos, excepcionais para a maioria das pessoas que frequenta o cinema Nimas, ou qualquer outro cinema. As personagens são perturbadoras, cada vez mais, à medida que a sua sobre-realidade se instala, em que se percebemos que estão a representar-se a si mesmas, com a mão e o olhar de Pedro Costa, que as demora, as confronta mas não as adultera. E, por isso, nem nós o podemos fazer. Haveremos de ter que lidar com esta Juventude em Marcha de uma outra forma qualquer. Ou sair da sala.
DM


* acho também absolutamente magnífico o texto de Rodrigues da Silva no Jornal de Letras, mas isso acho sempre por isso nem vale a pena destacá-lo. Ou vale:

"Já chega? Basta? Não, não basta, mas careço de espaço e por aqui me hei-de ficar. Estreia-se amanhã entre nós um filme (português, para mais lusófono, oh pátria da tão apregoada lusofonia!), será que ireis vê-lo? Vá, dizei que sim e ide. Para sermos dignos de algo maior do que nós. Como se, por uma vez, a vida imitasse a arte" Rodrigues da Silva in JL

Comentários

MPB disse…
Magnífico o texto de LMO assim como o teu texto. Não acrescento nada de novo tudo o que se possa dizer vai tudo bater no mesmo. Quem resite ao Tempo/Espaço do cinema de Costa, acabará sempre por dizer o mesmo.

Uma obra magnífica, sublime, acima das obras-primas, acima da formatação do cinema actual, acima de tudo.
Revolução formal, mas acima de tudo revolução emocional.

Não consigo expressar-me suficientemente bem, mas em relação ao "ritmo lento, lentissimo", apetece-me remeter isso para uma melodia humanista, ao ouvido "piano pianissimo" mas na alma... FORTISSIMO e BRUTAL.

Cumprimentos
noite americana disse…
Obrigado, Ne-To. É bom saber que vamos sendo alguns a gostar do Pedro Costa. Um abraço. DM

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