Sobrestar em Marienbad de papo para o ar

Um leitor endereçou-nos um mail no qual afirma sem paninhos quentes que não percebemos nada de filmes. Ora aqui está uma opinião cuja razoabilidade nenhum de nós, julgo eu, se atreverá a contestar. O que eu me atrevo a contestar é o pressuposto que está por detrás da frase, a saber: que existe um «saber de filmes» e que só na posse desse «saber de filmes» se pode escrever com propriedade sobre cinema. Repare o leitor Jorge Paupério que não afirmo que esse «saber de filmes» não exista, afirmo apenas que não sei o que é. A indeterminação da sua existência faz desse saber uma improvável causa eficiente da qualidade do que eu, ou o Jorge, ou quem quer, escreva.
Aliás, mais do que enciclopédicas referências, ter os nomes todos certos, ou sobrestar em Marienbad de papo para o ar, interessa-me num texto crítico a subjectividade. Ou seja, em última análise, o crítico, o autor. Eu quero lá saber da objectividade. A objectividade, como a Cova da Piedade, não tem interesse nenhum, é uma cretinice. A crítica sobre filmes, livros, discos diz muito mais sobre quem a escreveu do que sobre os filmes, os livros e os discos. E assim é que está bem. E se a realidade assim não fosse, tanto pior para a realidade. Eu já tenho o guia de cinema da Time Out em casa, muito obrigado. Num texto de crítica interessa-me a inteligência das associações, o abismo das incompreensões, as obsessões; o poder ir divertido pela mão de alguém que me ajude a ver coisas novas sobre isto ou aquilo, que manobre para ângulos inesperados, que levante as saias para ver por baixo, que diga disparates, que diga disparates gloriosos. A crítica ideal é uma espécie de traquinice arguta. A única coisa que realmente me interessa, é isso. Isso, e estar escrito num português irrepreensível.

A propósito, lembro-me sempre de um post de Alexandre Soares Silva que o Ivan uma vez citou, e que passo a transcrever (com a devida vénia).

«Vou lhe dizer o que eu espero de uma crítica: a reação de uma pessoa inteligente a uma obra de arte. É exatamente isso que eu quero, como leitor: as impressões de um homem inteligente. Não gráficos; não teorias científicas ou políticas; só quero que diga como se sentiu; que associações fez; onde estava quando viu tal filme, leu tal livro; na companhia de quem. O melhor momento na descrição que Mencken fez de uma luta entre Jack Dempsey e Georges Carpentier é quando ele fala de uma mulher linda sentada atrás dele: torceu por Carpentier em francês e aceitou o nocaute com heróica resignação. Fale disso – onde você estava e o que pensou quando viu o que viu – como estava se sentindo – e se um pensamento irrelevante, mas curioso, passou pela sua cabeça durante uma peça ou uma sinfonia, fale dele. Pelo amor de Deus, seja um ser humano. Não tenha medo de ser irrelevante – seja irrelevante. Não pense, se seu assunto é Goethe: meu Deus, estou me juntando à centenária discussão sobre Goethe – tenho que dizer algo relevante sobre ele, ou não falar nada. Não se junte à discussão relevante, naquele cômodo do inferno em que Edmund Wilson discursa para sempre sobre Goethe de modo muito relevante. Seja violentamente irrelevante e fale como se sentiu e onde estava quando leu sobre o país onde floresce o limoeiro. E acima de tudo: nenhuma menção a mimese, catarse, peripécia, carnavalização, Propp, Bakhtin, Marx, Freud - ou a qualquer outro científico filisteu que já tenha cunhado um científico jargão neste mundo. Eles todos ardem agora num muito científico e relevante círculo do inferno.»

RB

Comentários

Anónimo disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
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