Psicologia de uma cena

Levado pela análise da questão referida no post anterior aproveitei para, como podem constatar, alterar a imagem tutelar do Noite Americana.

Não é uma alteração qualquer. Tratam-se de dois frames especiais, integrantes de uma cena que me acompanha há mais de 15 anos.

Belle de Jour, que já aqui referi por mais de uma vez, como um dos meus filmes preferidos, senão mesmo o preferido, habita as várias dimensões da minha existência - física, psicológica, metafísica - de forma estranha, fragmentada, própria.

Uma característica específica é a obsessão que alimento por certas cenas do filme. Aquela que estes fotogramas referem é uma delas.

Séverine, que acaba de estar com o prodigioso chinês da enigmática caixa, está deitada na cama que, tal como o quarto, mostra sinais de muito desarranjo (para usar um eufemismo elegante). A cúmplice porteira da casa de Madame Anais, que exerce também funções de superintendência e governança, entra no quarto, depara-se com o cenário destruído e aflige-se. Fala do chinês, presume violência, angustia-se por Séverine e diz-lhe como deve ser difícil e sofredor. Nisto, Belle de Jour, que durante a cena sempre se mantém com a cabeça enterrada nos lençóis, como que confirmando a tese da violência e do sofrimento, levanta-se com o rosto e o olhar que aí tendes e profere uma das mais magníficas frases do filme: Qu'est-ce que tu en sais, Pallas?

A frase ganha o seu fulgor e a sua beleza de toda uma conjugação de elementos só possível a um nível muito raro de cinematografia, onde gosto de pensar que Buñuel e Deneuve se encontram. E mesmo Muni, a discreta mas eficiente Pallas.

É que se é nesta cena que Séverine deixa cair o seu ar gélido de indiferença e até alheamento, concorrendo assim para a importância e a beleza da cena, já que nunca mais voltaremos a ver Deneuve tão lasciva e perversa; é igualmente verdade que Pallas, com o seu nome e função, contribui para tornar a resposta de Deneuve ainda mais rica e densa. Se quisesse puxar a brasa para os meus temas diria que é o Irracional a desdenhar da Razão. Mas que sei eu do que passa pela cabeça de Buñuel...

DM

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