Um irish puro, sem gelo nem misturas


Estreias: ONDINE

De: Neil Jordan

Com: Colin Farrell, Alicja Bachleda, Alison Barry

Estamos em Castletownbere, uma vila piscatória no sudoeste da Irlanda. O ambiente da tela é verde e nublado; parece que se desprende humidade dela. Por detrás do véu da neblina, um pescador de nome Syracuse lança as redes ao mar. Quando as recolhe, não vem nenhum peixe, apenas uma jovem rapariga.

Syracuse não é um pescador qualquer. É um alcoólico que anda limpo há dois anos e sete meses, quando percebeu que, entre ele e a mulher, alguém teria de estar sóbrio para cuidar da filha que sofre de uma insuficiência renal e espera, há muito, um dador compatível. Nesse dia, não foi só a bebida que Syracuse deixou, foi também a casa e a mulher. Agora, vive sozinho entre o mar e uma pequena cabana. Tenta lutar honestamente por qualquer coisa, mas nem o peixe aparece nem a fama de falhado se lhe descola da pele. Na vila, Syracuse continua a ser Circus, o palhaço resignado à falta de sorte, à vida que tem.

No dia em que Ondine lhe aparece nas redes, Syracuse não quer iludir-se, sobretudo para não ter de se desiludir depois. Tem uma rapariga jovem e bela em casa, uma rapariga que parece vir de outro mundo e que, ainda por cima, lhe traz sorte. As redes começam a encher-se de lagostas, mas o pescador teima em convencer-se de que, mais dia, menos dia, tudo aquilo acabará tão depressa como começou.

O golpe de asa de Syracuse está em servir à filha toda a ilusão que nega a si próprio. Annie está doente, anda de cadeira de rodas e sofre tratamentos dolorosos e o pai, quando a vai buscar, faz-lhe sempre a mesma pergunta: “Anything strange or wonderful?” – uma citação entre irlandeses: Jordan evocando o “Ulisses” de Joyce. E, como nada de estranho ou maravilhoso aconteceu a Annie, tem de ser Syracuse a fornecer-lhe a dose de ilusão que permita fugir à realidade. Então, conta-lhe uma história: a história do homem que pescou uma mulher. Depois, a mesma verdade que o pai serviu como fantasia à filha é invertida e devolvida: Annie especula se não será uma selkie, uma figura lendária irlandesa, criatura do mar que vem à terra apaixonar-se por um humano e conceder-lhe um desejo. E, a pouco e pouco, a fantasia de Annie vai moldar a verdade de Syracuse.

Desde “Big Fish”, de Tim Burton, que não se via um filme tão debruçado sobre a arte de contar histórias e, acima de tudo, sobre a importância de acreditar nelas. E a tese é a de que a verdade é aquilo em que escolhemos acreditar.

Sonhador, idealista, “Ondine” move-se por caminhos perigosos entre uma consciência realista e uma pureza que arrisca cair na ingenuidade, mas Neil Jordan é um contador de histórias inteligente e experimentado e manobra com segurança até ao fim. Do nada, inventou em “Ondine” um conto de fadas tão escorreito, tão acertado, que parece circular há séculos de geração em geração. A seu favor, joga ainda Colin Farrell como Syracuse, um actor que, de há uns dois anos para cá, teve a grande ideia de voltar a representar, em vez de se limitar a passear pelos filmes. E joga a fabulosa Alison Barry como a pequena e brilhante Annie. E joga Stephen Rea, um jordaniano habitual que aqui encarna um padre que partilha com Syracuse alguns diálogos de ir às lágrimas.

Então, porquê ficar pela nota três? A etiqueta das estrelas é sempre cruel, injusta e diz muito pouco. “Ondine” tem momentos magníficos e, sobretudo, vive da tremenda audácia de querer ser puro e simples. Mas compromete muita da sua própria tese quando nos revela, perto do final, a realidade acerca da rapariga aparecida nas redes. Se somos nós quem escolhe aquilo em que acreditar, Jordan não tinha o direito de nos estragar com a verdade.

AB

i, 2010.10.28

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