O evangelho segundo José Saramago


Estreias: JOSÉ E PILAR

De: Miguel Gonçalves Mendes

Com: José Saramago e Pilar del Rio

A princípio, Saramago não queria. Não via que interesse poderia haver em filmar-lhe os dias com Pilar. Depois, quando viu o resultado, terá percebido. Afinal, disse, era um filme sobre a vida. É difícil dizer melhor; podemos apenas fazê-lo com mais palavras. É um filme sobre a vida consciente, a vida que sente a morte aproximar-se, mas sem sentimentos de tragédia. Saramago é aquilo que escreveu e sempre pareceu ser: ateu, crente na vontade individual, lúcido, pragmático, senhor do seu destino.

Entre 2006 e 2008, Miguel Gonçalves Mendes instalou-se em Lanzarote e daí partiu para toda a parte, seguindo José Saramago e Pilar del Rio. O resultado está aqui, num filme tão poderoso como difícil de catalogar. Não é bem um documentário, é um documento. Um reality-show como nunca tínhamos visto: com gente inteligente. Gloriosamente inteligente.

Começamos de manhã, uma manhã qualquer, n’ A Casa. Saramago senta-se ao computador. Ouvimos a melodia enervante do Windows abrindo. O escritor, impaciente, agita o rato. Vai pôr um disco. Regressa ao computador e joga uma paciência – delicioso. Depois, há-de começar a escrever “A Viagem Do Elefante” e seguir ao ritmo habitual das duas páginas diárias. Mas, aparentemente, escrever não é a actividade principal dum escritor consagrado; é aquilo que faz nos tempos livres. A culpa não é dele; é do mundo que adora escritores consagrados, mesmo que pouco ou nada os tenha lido (é claro que Saramago foi e é muitíssimo lido, mas basta recordar que não faltaram analfabetos na sua última homenagem – o que não deixa de ser de uma ternura desarmante).

A vida de alguém como Saramago é representar em permanência um papel de consciência do mundo. A de Pilar, estar ao lado, tremendamente ao lado dele, com tudo o que isso significa. Ele responde a cartas, aos pedidos de apoio a todas as causas e mais alguma, recebe estudantes, trabalha na inauguração da biblioteca, na da fundação, escreve no blogue, escreve frases para monumentos, vai às homenagens, à terra natal, à terra adoptiva, ao México, ao Brasil, à Finlândia, dá entrevistas, depois dá mais entrevistas, depois pedem-lhe uma mensagem sobre o Natal e ele, subitamente pequeno atrás do grande microfone, sussurra aflito para Pilar, “mas eles saberão que eu odeio o natal”. [este parágrafo foi uma singela homenagem formal à escrita do homem em epígrafe]

Todos querem um autógrafo, um beijinho, uma fotografia, uma palavra, uma frase, uma ideia. Ele já não é a consciência daquele mundo; tem de ser a inteligência dele. E, às tantas, desabafa connosco: é cansativo ter de estar sempre a sorrir. É cansativo ter de estar sempre a parecer inteligente.

A pouco e pouco, vai-se sumindo, até se tornar uma presença espectral. Já não está em lado nenhum; é levado. Desaparece dentro de si. Adoece. Está entre a vida e a morte. Há-de regressar porque, como dirá na dedicatória d’ “A Viagem Do Elefante”, Pilar não deixou que morresse. Esta é que é a tragédia: o mundo todo a pedir-lhe que fale e ele que só quer escrever. O mundo todo a pedir-lhe publicidade e ele que já só quer a intimidade. E, de repente, o homem inteligente é o homem elefante.

A vida toda está dentro deste filme. Não é verdade, mas também não é completamente falso e é daquelas frases que fica bem na capa do dvd. Se há opções estéticas e de montagem que se poderiam discutir, há algo inabalavelmente bom no trabalho de Miguel Gonçalves Mendes: esteve por todo o lado e em todos os momentos, mas fez o possível para que não reparássemos nisso. Deixou-nos a sós com Saramago e Pilar, mesmo quando o mundo inteiro estava à volta.

AB

i, 2010.11.18

Comentários

Filipe disse…
Já o vi há uma semana mas ainda habita no meu pensamento... Uma enorme e óptima surpresa!!!

"(...) um filme tão poderoso como difícil de catalogar. Não é bem um documentário, é um documento. Um reality-show como nunca tínhamos visto: com gente inteligente. Gloriosamente inteligente."

Ora nem mais!
Parabéns pela excelente crítica.
Anónimo disse…
Também anda ainda aqui por dentro, o que costuma ser um excelente sintoma. Obrigado, Filipe.
frosado disse…
Tu escreves muito bem! E sobretudo, "lês," muito bem. ADOREI. bjs
Anónimo disse…
Olha, a Fátima! Obrigado pela visita. Beijos

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