Eu podia pegar numa Glock e alvejar-te

A certo momento de A Rede Social (The Social Network), o último filme de David Fincher, sobre o ubíquo Facebook, Mark Zuckerberg (juntamente com Eduardo Saverin, dois dos criadores da plataforma de 500 milhões de utilizadores) acaba de assistir a uma palestra dada por Bill Gates em Harvard e é confrontado com a sua recente popularidade por um grupo de geeks, presumivelmente caloiros e fascinados pelo sucesso de Zuckerberg no exclusivo meio de Harvard. Um dos caloiros nota que Gates terá olhado para Zuckerberg quando disse que o próximo Bill Gates poderia estar naquela sala. E o caloiro completa admitindo que nem sequer sabia quem era o orador. Perante tamanha gaffe, sobretudo à escala do que falamos, um dos seus amigos, geek e caloiro, profere o seguinte mantra "eu podia pegar numa Glock e alvejar-te". É toda uma tese.

O cidadão comum diria qualquer coisa como "tu devias ser morto" ou, na melhor das hipóteses "eu devia pegar numa arma e rebentar-te os miolos". Mas o geek caloiro e, tendo em conta que falamos de Harvard, um potencial multimilionário, distingue-se da mole humana por uma única razão: a obsessão (pelos detalhes).

Acontece com todos, desde os geeks do role playing, até aos geeks da música alternativa, passando pelos geeks da mitologia grega (esse clássico) e dando a volta até aos geeks da programação. Um geek não consegue viver sem o detalhe, sem o pormenor, sem a referência concreta e específica, que localize, que referencie, que permita a comparação. com muitas mais referências. O mundo é um enorme index onde é fácil perdemo-nos. Logo, um geek não pegaria simplesmente numa arma e mataria alguém. Um geek pegaria numa Glock, por muitos considerada a melhor fabricante de armas pessoais.

Eu poderia estar a dar muito valor a este pormenor não fosse o facto de conhecer de ginjeira o argumentista. A minha autoridade é simples: vi duas vezes as sete épocas da West Wing, duas vezes a única época de Studio 60 on the Sunset Strip e todos os cincos filmes de que Sorkin foi argumentista (embora me penitencie por nunca ter visto a Sports Night, a sua primeira série).

O primeiro diálogo de A Rede Social é unicamente genial marcação de território. Como diriam os norte-americanos: that's vintage Sorkin (bolas, e que saudades). Mas se o primeiro diálogo de The Social Network é só mesmo um cartão de apresentação, já o monólogo técnico de Zuckerberg, uns minutos depois, quando, meio embriagado, cria Facemash é a confirmação do que escrevi nas linhas anteriores. And then some.

Em primeiro lugar Sorkin é também ele um geek e compreende, por isso, a importância do pormenor como forma de criar referências comunitárias e de identificar grupos específicos. Mas, além disso, compreende bem o fascínio que esse mundo pode produzir no resto do mundo. É isso que as pessoas querem e que passam boa parte do tempo a construir, dentro das suas circunstâncias e possibilidades. Aliás, Sorkin é um geek da comunicação como toda a sua carreira demonstra, sobretudo olhando para os temas que escolheu para as suas séries (desporto, política e televisão).

Daí que, para além da excelente perspectiva que o Alex adoptou (e com a qual estou em total acordo), me interesse destacar a dimensão de exumação do geekismo levado ao extremo. Há um certo autismo quando a obsessão nos torna incapazes de colocar as coisas no devido lugar de uma escala de valores. Ou quando, simplesmente, nos impede de agir numa escala de valores (creio que isto podia ser autobiográfico, falando do Sorkin).

Tomando esta perspectiva como uma linha de análise de The Social Network, o filme revela a solidão do génio criador, em que toda a tensão é colocada na natureza dessa solidão e desse génio. As propostas sucedem-se: a namorada do início do filme acusa Zuckerberg de ser parvo e a advogada do fim iliba-o: ele não é má pessoa, só se esforça muito para o parecer.

De todas as perspectivas pelas quais possamos olhar para este filme de David Fincher esta interessa-me sobretudo porque é uma dimensão esquecida e que ajuda a perceber a ascensão de uma nova classe de empreendedores e investidores que são aqui recolocados na sua irredutível (e muito esquecida) dimensão humana, demasiado humana (um allzumenschliches que Sorkin conhece bem) e que Fincher soube representar com mestria na última e esplêndida sequência deste filme.

Além disso permite também um certo tributo amargo àqueles que com uma certa inabilidade pessoal, muitas vezes se tornam gurus do (novo) mundo social.
DM

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