O cinema e o vinho: a mesma luta

Creio que um dos meus grandes avanços civilizacionais foi a preferência do realizador como critério para o alargamento da minha colecção de filmes. A minha cinefilia agradece. Tenho para mim que é preciso uma certa perspectiva de fundo sobre o cinema para admitirmos que devemos prosseguir o nosso coleccionismo através dessa coisa mais vasta chamada "obra", do que através da manta de retalhos que os filmes de que gostamos proporciona. Passar de uma colecção de filmes, construída à custa do amealhar de títulos que nos marcaram, apesar de intuitivo e fácil de apreender pelo senso comum, tem também as marcas, tantas vezes evidentes nos últimos dias de uma era, de facilitismo e cedência aos instintos mais primários (o que não é necessariamente mau, mas não é disso que cuido agora). Pelo contrário, a História demonstra-nos que muito do que é civilizado se conseguiu contrariando o senso comum e apurando opções que não pareciam óbvias à primeira vista. Passar de uma colecção de filmes, imediata, chamemos-lhe assim, para uma colecção mediada por essa figura incontornável, verdadeiro demiurgo das imagens em movimento, o realizador, é um bom exemplo disso. Faz bem consumarmos um ou outro prazer irreprimível e adquirirmos um título que nos interessa ou persegue mas a verdadeira colecção, tenho hoje a certeza, constrói-se com a ajuda do realizador. O que se pode perder em qualidade final (hélas, nem todos os realizadores conseguem uma vida sempre ao mais alto nível) ganha-se em compreensão mais profunda de uma obra. E, logo, em ligação do cinema à vida. Ponho o meu dinheiro onde está a minha boca: acabo de adquirir Vampyr e A palavra (é verdade que o exemplo não é feliz, na medida em que este senhor teve dificuldade em fazer maus filmes). Mas poderia referir também Ashes of Time (recomendo a versão blu-ray da edição Redux), de Wong Kar-wai, a que dificilmente teria chegado, se não fosse pelas mãos do génio.

Ora a epifania que me ocorreu recentemente prende-se com o paralelismo que podemos traçar entre esta evolução e uma outra que pode suceder ao enófilo cuja iniciação avançou já alguns patamares seguros: o deixar de coleccionar o vinho pelas regiões ou pelas castas e avançar, sem medos, para o enólogo. Não é bem possível dizer que o realizador está para o cinema como o enófilo está para o vinho, na medida em que, não obstante o toque da Providência em toda a obra humana, o realizador tem, apesar de tudo, maior controlo e responsabilidade sobre a sua visão. Já o enólogo é um parteiro, numa linha mais socrática, só bem compreendida pelo estudo aprofundado da maiêutica. Mas para o caso aqui em apreço o paralelismo resiste: escolher um vinho pelo seu enólogo, embora seja uma actividade eivada de escolhos, reserva, na clássica metáfora, muita beleza para além dos espinhos. Permite, à semelhança da opção pelos realizadores, enriquecer a garrafeira com opções de vida à laia de vinho. O enólogo imprime a sua marca num vinho e, logo, em todos os vinhos que faça. Tome-se, por exemplo, o trabalho realizado por Tiago Alves de Sousa e Anselmo Mendes e a obra que vão deixando aos enófilos agradecidos. Tenho andado deliciado com o Gaivosa, Primeiros Anos (2008, tinto), do produtor Alves de Sousa (um caso de sucesso, além de admiração, esta dupla constituída pelo pai Domingos e filho Tiago). Mas há, claro, o magnífico Abandonado (infelizmente já quase impossível de encontrar) e o leal Quinta da Gaivosa. Apesar de vinhos distintos, que poderia ter adquirido sem a noção de que havia neles uma mão comum, esse conhecimento beneficia a prova. Cria-se um diálogo silencioso, entre o espectador e o autor, perdão, entre o bebedor e o autor. E, tal como com o cinema, a experiência da degustação merece ser ampliada por todas as referências e saberes possíveis. No fundo, Se numa noite de Inverno um bebedor...
DM

Comentários

Ines Cisneiros disse…
Há pouco tempo comecei a reparar que fazia o mesmo, quando dei por mim a ver filmes (que nem me pareciam muito apelativos) só por serem deste ou daquele realizador e a "consumi-los" como desde pequena faço com os livros de autores de que gosto (sejam colecções ou não). Cheguei à conclusão (que venho partilhar) de que provavelmente seria influência do Noite Americana (e, claro, do curso, que nos ensina a arrumar tudo em gavetas, por sua vez compartimentadas, etc.).

Aquilo que inicialmente me intrigou foi o porquê de estabelecer um paralelo entre Autor/Realizador e não, por exemplo, Autor/Argumentista. Acho que a resposta não é difícil: o Realizador em principio terá a palavra final em tudo; é responsável pla situação complexa em globo, na qual se integra o argumento, como situação analítica, entre outras. E isto, apesar de básico, deu-me a resposta para o facto de eu nunca gostar de adaptações cinematográficas de livros que li e já percebo porque é que o Alexandre (salvo erro e, não sei se plo mesmo raciocínio. provavelmente não, não sei..) costuma insistir na autonomia do filme face ao livro.

E isto tudo poderá ter pouco ou nenhum interesse, mas apeteceu-me partilhar porque já andava a pensar no assunto e o paralelo com os vinhos (disso é que não percebo mesmo nada) reavivou a questão.

*
noite americana disse…
Olá, Inês

O debate livro/filme é um daqueles intermináveis debates que, por exemplo, está sempre de prevenção em qualquer jantar Noite Americana, para o caso de haver falta de tema (nunca sucedeu até agora mas nunca se sabe...).

Fizeste muito bem em partilhar ;)

DM

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