Liberdade para que te quero

No outro dia, no novo suplemento Ípsilon, e logo para a capa, abordava-se a questão de saber se, a propósito de Babel (o qual não vi, e não gostei), a crítica estaria mais ou menos deslegitimada por supostamente existir um divórcio entre o gosto da crítica e o gosto do público. Aquela detestando, este adorando.
Para o cerne da questão, o facto de Babel ser «bom» ou «mau» não interessa nada. O que é a objectividade? Deve a opinião do crítico, para ser «boa» ou «útil», espelhar a do espectador? Coincidir com a maioria? Com a mediana? Ser «objectiva»? A única objectividade que me interessa numa crítica é a subjectividade do seu autor enquanto crítico, a qual depende da sua intocada liberdade (nem que seja enquanto ficção performativa).
Este é o tipo de questão em que se impõe que se seja normativo, por se tratar de uma dimensão constituinte do espaço de discussão pública, logo da forma mais ou menos democrática segundo a qual a nossa sociedade se organiza. Ou seja, por esta ser uma questão política, embora num sentido diferente do levantado por Daniel Oliveira no mesmo Ípsilon.
O crítico não deve espelhar, nem representar, deve intermediar. O crítico não está em lugar de ninguém, muito menos do povo, do público. A sua função é, no sentido que a seguir uso, «política», mas nunca de «representação política». Sobretudo, o crítico não deve estar nada preocupado em espelhar o que quer que seja, embora já deva estar, e permanentemente, preocupado em intermediar os objectos e o público, o montante e o jusante do seu lugar na discussão (ou na indústria). A esfera pública nasceu para que a sociedade pudesse participar na feitura da própria sociedade, imaginando-se como um eterno e plural debate. Enquanto perene discussão tida em público, e pelo público. Imaginando-se, na verdade, liberal e democrática. Esta auto-feitura da sociedade cumpria a promessa das Luzes de libertar o Homem das grilhetas da gleba, da Fé e da sombra do adscritivo. Era, por isso, emancipatória. Era e é.
Assim, neste esquema geral das coisas (que, repito, é político, ipso facto normativo) todos podem ter uma opinião, todos têm direito à mesa do debate, todas as opiniões são válidas e a ninguém está vedado o acesso à discussão. Sucede que a discussão tem suportes imateriais (como a literacia, as «maneiras», etc.) e materiais, como os jornais, o romance, e, mais tarde, os órgãos de comunicação de massa, nos quais participam os críticos.
Aliás, não sejamos hipócritas. A descoincidência entre a opinião da crítica e da turba nunca foi um problema quando se tratou de a crítica defender a alta cultura contra a baixa cultura. Por exemplo, no final do século XIX um conhecido publicista francês criticava uns senhores que agora havia aí assim à esquerda que queriam elevar a massa proletária ao nível de estupidez da burguesia. Portanto, a diferença entre crítica e público nunca foi um problema desde que pudesse ser reconduzida aos dois lados da dicotomia: alta e baixa cultura – ou, noutro contexto, entre as «classes conversantes» e as «classes trabalhadoras». A novidade da discussão em torno de Babel é ter lugar num espaço comunicacional pop, ou seja, no qual as diferenças entre alta e baixa cultura se esbateram em boa parte. E na verdade, a classificá-lo em algum lugar, o filme Babel estaria na parte Alta da estante. Talvez isto justificasse a deslocada aflição, se não fosse apenas deslocada.
Gostava aqui de relembrar um ponto que remete para a teoria moral kantiana e, por isso, respeita à acção moral de cada um de nós na vida de todos os dias. Refiro-me à distinção entre autonomia e heteronomia. A ideia de autonomia é a de que quando o indivíduo age enquanto ser moral (não confundir com «moralista», claro está), o indivíduo atribui-se o seu próprio rumo, dirige-se a si próprio. O indivíduo moral resiste às paixões naturais e ao instinto animal; sobretudo, não vai na carneirada. No sentido kantiano de autonomia, o indivíduo resiste às noções dadas por adquiridas, às formas convencionais de entender a realidade, a tomar as coisas pelo seu valor facial. Esta ideia tem sido muito importante, desde logo na organização da produção de conhecimento científico no Ocidente. Mas não só: ela sugere-nos que um envolvimento crítico com o mundo que nos rodeia implica para o sujeito actos de resistência. Parece-me crucial que cada um exercite essa autonomia vital, que cada um não abdique desse espaço de liberdade e que cada um resista ao que tiver de ser resistido. Seja crítico, ou não.

RB

Comentários

Anónimo disse…
RB, we luv ya!

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