A Matéria e A Forma

Ontem, atrás de mim no cinema, ao terminar a apresentação do novo filme de Zhang Yimou, A Maldição da Flor Dourada, alguém disse: este tipo está sempre a fazer o mesmo filme.

Olhando para a cinematografia de Yimou e tendo a presunção de saber a que filmes se estava a voz a referir - Hero e House of the Flying Daggers - não é completamente justa esta afirmação mas é provocatória e interessante. Já lá vamos.

A verdade é que antes deste seu último filme, Yimou havia realizado Riding alone for a thousand miles, um filme terno e divertido sobre as desventuras de um pai na China profunda, às voltas com a doença de um filho e um documentário por terminar. Como este filme há outros exemplos como o magnífico e já aqui referido (por ser um dos meus filmes preferidos), A Tríade de Xangai. Outros exemplos de cinema não fantástico (ou não repleto de efeitos especiais) na obra de Yimou, que conta já mais de uma dezena de longas metragens.

Dito isto, uma coisa é certa. Quando Zhang Yimou filma romances históricos a Forma parece sobrepôr-se à Matéria. E, quando isso acontece, pode ser legítimo dizer-se que, é tal a sua potência, que a forma sunjuga a matéria, normaliza-a e parece torná-la homógenea, mesmo quando não é. Daí atribuir alguma razão à voz que proferiu "este tipo está sempre a fazer o mesmo filme".

Sem ainda ter visto A Maldição da Flor Dourada; tendo apenas visto a apresentação; não é difícil lembrar Herói ou O Segredo dos Punhais Voadores. Mas também podemos lembrar O Tigre e o Dragão, de Ang Lee. O que acontece, creio, é que a forma escolhida para estes realizadores é de tal modo original, plástica e intensa que corrompe a atenção à matéria em preferência da forma. Lembramo-nos de como se mexem as personagens, como lutam, como pairam, como voam mas nos lembramos do que as move. E a história parece, assim, sempre a mesma. É verdade que as próprias histórias não ajudam, remetendo-nos sempre para uma China antiga, medieval, que desconhecemos na Europa e que nos parece toda muito difusa. Rara será a pessoa que entre 500 e 1700 conseguirá localizar a acção de um dos filmes que referi. A China continua a ser um mistério. Isso talvez explique acharmos que Yimou está sempre a realizar o mesmo filme sobre a mesma China imperial e dinástica, com a sua cidade proibida, os seus milhares de guerreiros e não nos passe o mesmo pela cabeça sobre Godard ou Truffaut, que estão sempre a filmar Paris. Apenas porque, para a maioria daqueles que os vê, Paris é muito mais próximo e/ou real que a China. E, quando dominamos ou nos interessa menos a Matéria a Forma é tudo o que temos.
DM

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