Crianças Pequenas

There's something about Todds... De Happiness, no para mim longínquo ano de 1998, guardo duas memórias: um miúdo a masturbar-se, lá para o final do filme, e uma canção interpretada por Jane Adams e depois recuperada nos créditos finais por Michael Stipe. Visto por este prisma mnemónico, de Todd Solondz a Todd Fields nada mudou muito. Apenas a ironia ficou mais sofisticada.

De Fields só havia visto, até ontem, In the bedroom, filme que não esqueço mais por razões pessoais do que pela sua qualidade intrínseca. Daí que, para mim, Happiness seja muito mais seu do que qualquer outro filme que tenha realizado (foram seis antes deste).

Comecemos pelo título. Bem sei que sou um purista chato e por mais de uma vez tenho aqui criticado traduções de títulos que bem podiam passar undisturbed. Mas quando se unem, numa tradução, dois problemas graves é tempo de criticar. E criticar forte e feio.

O problema mais grave, evidentemente, é esquecer que o título, como parte de uma obra, é também uma expressão de arte. Não são apenas palavras lançadas ao acaso (mesmo quando o são). Little Children é, além de duas palavras, uma expressão. Como em: "parecem crianças pequenas" aplicadas a parvoíces de adultos. E se isto não é quase um resumo do filme, não sei... Mas não é. É apenas uma piada, uma provocação ao iminente espectador. Daí que a tradução carecesse de exigência. Mas, a rematar esta catástrofe tradutória dá-se o caso do título escolhido em português não só não se aproximar do sentido original como ainda se afastar. Pecados íntimos é tudo o que não há no filme de Todd Field. Há, aliás, pouca intimidade em Little Children e a que há é completamente, exposta, dissecada. E, pecados, bom... Mas já lá vamos.

O primeiro pormenor verdadeiramente fabuloso de Crianças Pequenas é a recuperação, perversa e deliciosa, da figura do narrador. Não só a lembrar Desperate Housewives mas a lembrar igualmente (algo que essa série também pretende lembrar) a figura do narrador na terceira pessoa, bondoso, omnisciente, que tudo vai explicando.

Perversa porque se o tom é aquele que acabei de evocar o conteúdo é tudo menos bondoso. O narrador intervém para explicar uma América que não (se) compreende. Uma América umbiguista, mediana, medíocre por vezes, que não reflecte sobre si mesma, que se enfada, repete, multiplica até à boçalidade. Sem querer entrar na crítica civilizacional, essa América é também a que mais me fascina. Como a Todd Field. Se o seu olhar é um olhar irónico sobre a Grande América, a sua espinha dorsal, esse olhar está fascinado por essa América profunda. E esse fascínio vem demonstrado através de um expediente simples: o confronto com uma das partes decisivas e determinantes dessa América: as crianças.

O corpo e o tempo, título possível para obra filosófica existencialista, são uma dupla feroz e temível. Para cada corpo há uma idade, para cada tempo há um corpo. E, por muito, que a cabeça tente escapar a este binómio - ignorando-o, confrontando-o, rejeitando-o - ele é inescapável. E decisivo. No filme de Todd Field a única harmonia entre o corpo e o tempo é aquela conseguida pelas crianças. Elas são as pessoas equilibradas deste filme, aquelas cujo corpo são carrega (ainda) uma mente sã. Aliás, em duas cenas magníficas, as duas crianças do filme, assumem o papel inverso ao seu e, mantendo-se crianças (na cama, na cadeirinha de bebé), ensaiam uma paternidade virtual, confortando o pai e a mãe. Estas são as little children literais de Little Children. As outras são quase todos os adultos. Excepto um: Kathy, Jennifer Connelly. Essa, exceptuada as personagens secundaríssimas (como a sua própria mãe), é a adulta funcional de Little Children, pontuada por preocupações recorrentes e conhecidas: pagar as contas, garantir o bem-estar da família, ligeira obsessão pelo trabalho, total centramento no filho, com prejuízo para o marido. Kathy está no seu corpo. O corpo e o tempo dizem-lhe que ela é uma adulta e ela assume a posição. É a única. Todo o resto de Little Children é povoado por uma miríade de little children metafóricas. Mas não totalmente iguais.

Há diversidade nestas pequenas crianças adultas. O destaque vai aqui para Kate Winslet, Sarah. Ela representa a mulher que está consciente do mundo em que vive, que se ergue acima dele e, em certa medida, contra ele. A cena sobre Madame Bovary é muito boa. Porém, sucumbe ao tédio, à carência, ao corpo. Sucumbe à promessa de felicidade. Ou, pelo menos de novidade. E Kate Winslet tem um desempenho brilhante entre tragico-cómico, sempre periclitando entre o comovedor e o risível.

Em Little Children as crianças é que mandam. Sejam as criancinhas de loiça, espalhados pelas prateleiras da casa de Ronnie, o pedófilo; sejam as crianças reais, marcando as rotinas diárias das mães (e do pai) que delas cuidam; sejam as crianças metafóricas, que não conseguindo ensaiar uma idade adulta funcional ( sem qualquer juízo de valor sobre a sua bondade e felicidade) se enganam com uma social e aceitável loucura de normalidade. A esse respeito, a cena em que Ronnie, o pedófilo, vai até à piscina onde as crianças costumam estar às tardes, é a melhor caricatura do que é a América profunda e o seu código moral. Mas que pode bem ser transplantado.

Mesmo o duo que tenta escapar a esta dicotomia e procura buscar a felicidade/liberdade, Sarah/Brad, é relembrado da quase cósmica impossibilidade de escapar ao corpo (a queda sorridente de Brad) e ao tempo (o susto de Sarah com a filha).

E o melhor é que, à parte a ironia e o fascínio, não há uma moral para este filme. Ele acaba, é certo, com as peças encaixando, com uma história que se encerra, um caso que termina mas deixa o sabor a tudo na mesma que, dado o olhar amplo da câmara de Todd Field, não deixa de nos fazer pensar (e perceber) que o que aconteceu ali é pequeno, mínimo, comezinho, banal, um micro-cosmos que, sem dúvida, se repete, em cada rua, cada bairro, cada cidade, cada Estado.
DM

Comentários

C. disse…
Bom texto. Belo filme. Quero pegar no livro...
Anónimo disse…
Adorei o filme e também já me tinha irritado com a tradução do título- para quê tanta criatividade? A fotografia também é muito boa, como se pode rever no site...
Puto Psycho disse…
Que texto magnifico! E a Phyllis Somerville? Apesar de um tardio começo enquanto actriz, parece ainda a tempo de um Oscar... A sua personagem que aparenta ter um carácter tão secundário, acaba por ser uma força que se revela aglutinadora e ao mesmo tempo responsável pela fragmentação e resolução do filme. Uma Mãe, que ao abandonar a casa, deixa cair o peso nas crianças que brincam: "be a good boy". E tem o discurso mais explicitamente existencial, na conversa com o filho, sobre o heroísmo de continuar a vida, sabendo que perderemos os que mais nos importam...

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