teoria da linguagem



O crítico do periódico mensal tem do seu lado a grande vantagem de poder sentar-se a fazer o seu trabalho já depois de todos os congéneres dos diários e semanários terem feito o deles. Que significa isto? Que ele se pode debruçar sobre o escrutínio daqueles acerca dum determinado filme para elaborar o seu próprio? Muito melhor. Ele pode criticar os próprios críticos. Sim, caros amigos, já vai sendo tempo de lançar as tabelas de dupla entrada com estrelinhas diante do nome de cada critico e análises sumárias da sua qualidade de cinco, seis loucas linhas de uma coluna de jornal.
E, agora, lançada que está a ideia e assegurados os direitos de autor, explicitemos a prosa: o filme do ano, salvo um grande milagre que por aí venha, está escolhido e chama-se The Departed, de Martin Scorsese. Mas o cinema não é a Primeira Liga e, uma vez apurado o vencedor, continua a haver interesse em seguir os restantes contendores no que sobra de campeonato. E, assim, uma deslocação ao terceiro anel de qualquer sala, a fim de assistir ao derby entre nós e o novo filme de Alejandro González Iñarritu, resultará sempre num investimento, pelo menos, aceitável, e jamais passível da cotação com uma bolinha ou uma estrela ou, pura e simplesmente, os zero pontos devidos à derrota com que muitos comentadores cinematográficos (chamemos-lhes, ou chamemo-nos “Gabrieis Alves das fitas) o cotaram. Porquê?
Babel tem, pelo menos, três cenas de antologia. Assim de repente, não é fácil lembrarmo-nos de muitos filmes que contem com três cenas de antologia. Quais são? Richard (Brad Pitt) e Susan (Cate Blanchett) são um casal em crise de desencanto, de tédio, desde o início da película. A viagem que fazem a Marrocos é uma tentativa de fuga a essa paralisia dos dias, a resultar, até então, infrutífera. Já com uma bala no corpo, a perder sangue de modo torrencial, Susan pede um recipiente onde possa urinar. Ele é-lhe, depressa trazido pelo autóctone Anwar (Mohamed Akhzam). Richard pede-lhe que os deixe a sós por um momento. Quando Susan está a meio desse acto plenamente privado, humano e distante das perfeições do encantamento amoroso, e Richard a segura para que o possa fazer sem se sujar, é que eles, marido e mulher, se abraçam e beijam pela primeira vez, precisando-se, amando-se e redimindo-se.
Noutro momento, Chieko (Rinko Kikuchi), que é surda-muda – informação que temos desde a sua primeira aparição – entra com as amigas numa discoteca de Tóquio, que é um verdadeiro templo nocturno, com tudo quanto celebra a noite – a música, a cor, os corpos, o excesso, a perfeição inventada a partir do que é escondido – seguindo um jovem com quem acredita poder inaugurar o seu historial afectivo, todos nos esquecemos da sua deficiência. Milhares de vezes terá já o cinema recriado ambientes de discotecas, mas, aqui, Iñarritu consegue, sabe-se lá por que artes, seduzir-nos e surpreender-nos e levar-nos, verdadeiramente, para o interior vertiginoso do lugar. Chieko parece ir salvar-se. Caminha na direcção da música e do ritmo e da dança. Na direcção do jovem que é tudo o que ela não é. De súbito, a cena passa para o plano subjectivo de Chieko. Do seu olhar, que é o nosso, mas sem banda sonora, sem música, só absurdo de toda aquela gente rindo e gritando e agitando-se como louca, no meio do mais total e completo e constrangedor silêncio. Dizemos, incomodados pelo nosso próprio esquecimento: “Pois é. Ela é surda.”
Por fim, ainda Chieko e Tóquio, desta feita, num dos mais belos e perversos planos finais da História. O pai de Chieko chega a casa, ao apartamento sublime no alto de uma torre sublime, com uma vista sublime sobre Tóquio. Não vê Chieko. O pai bondoso não se sobressalta; antes caminha, serenamente, até à varanda cuja vidraça está aberta. Vê Chieko, a filha adolescente, nua na varanda. Sabemos que a mãe de Chieko, a mulher do pai bondoso, se matou. E que Chieko mentiu à policia, não entendemos bem porquê, dizendo que se lançou daquela varanda e não com o disparo certeiro duma arma como assevera o bondoso e credível pai. O pai continua e vai continuar sem se sobressaltar. Ele caminha até Chieko nua e abraça-a. Os dois abraçam-se infinitamente na varanda. E o plano abre até que os contemplemos apenas como uma luz mais no skyline nocturno de Tóquio (e Tóquio revela-se, de novo, fria e deslumbrante, de modo renovado como lugar da incompreensão e dos problemas de linguagem, como em Lost In Translation). Tudo é sublime, porque belo e, talvez, monstruoso, muito maior que nós, que o nosso entendimento. Kant não filmaria melhor, partindo do pressuposto de que saberia filmar como pensava e escrevia e fosse contemporâneo do cinema.
Babel, muito mais que um filme sobre a dor, é uma tentativa de tratado acerca da linguagem. Dos equívocos, dos mal-entendidos, dos problemas de tradução, de expressão e, sobretudo, de quem ouve. Não por acaso é falado em Inglês, Japonês, Árabe, Castelhano, Francês e linguagem gestual. No todo, peca por muitos lados: a superficialidade e adolescência das personagens, todas reagindo ao primeiro e imberbe impulso, sendo essa natureza primária a razão despoletadora dos conflitos que movem o filme, o que é mau, muito mau. O texto de Guillermo Arriaga é injusto para com a sua própria ideia, ficando-se pelas primeiras palavras que nos ocorreriam dizer em qualquer daquelas situações, o que é pobre, muito pobre. Mas um filme que tem três cenas de antologia não merece a bolinha nem os zero pontos da derrota. Tem de ficar a meio da tabela. Para não dizer que vai à Europa.
AB
texto publicado na revista Atlântico nº 23

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