A árvore da vida - II - Os dinossauros


Vamos tomar os dinossauros como a ponta do iceberg, para usar esta alegoria de fundo. A verdade é que os dinossauros são apenas o sintoma mais agudo de uma maladie crónica. Fartei-me de ouvir pessoas - pessoas, veja-se bem - criticar a Árvore da vida porque, por exemplo, estavam lá, a mais, os dinossauros. Mas na verdade estão contra tudo o que não seja aquela parte em que os actores, de carne e osso, interagem (é verdade que de forma muito peculiar, acrescentam também) uns com os outros. Aquelas imagens estupendas de micro- e macro-fenómenos são uma estopada, pensam e dizem.

E são uma estopada porque são desnecessários, porque cortam o ritmo, porque isto e porque aquilo. Todas estas pessoas têm razão. E têm razão por uma razão muito simples: é minha convicção, já aqui por várias vezes defendida, que, em arte, como em quase tudo na vida, nós temos uma quota-parte de responsabilidade na construção da realidade. A obra artística depende sempre do beholder. Como a beauty, no fundo.

Ora estas pessoas - pessoas de bem, quase todas, conheço algumas - não encaixaram cerca de metade de A árvore da vida. Têm direito. Creio mesmo que o próprio Malick não se importará com isso. Creio mesmo que o próprio Malick já achará bom que tenham ido ver o filme (é o que dá meter Brad Pitt e Sean Penn no elenco). Estou a brincar: acho que o Malick se está nas tintas, na verdade.

Como escreveu Agostinho da Silva, nas Sete Cartas a um Jovem Filósofo, quando temos a obra, a obra tem-nos. Ora Malick tem a obra e, por isso, a obra tem-no. E há que expressá-la, na justa e possível medida das capacidades pessoais e técnicas. Foi o que Malick fez. E há que apreendê-la na medida das nossas possibilidades e conformações pessoais. É o que vamos tentando fazer.

Já aqui notei que Malick é um filósofo que usa o cinema como medium da sua filosofia. É por isso mais justo compararmos Malick aos pré-socráticos, a Kierkegaard, William James ou Wittgenstein, do que a Griffith, Ford, Truffaut ou Kitano. Isto, se pretendermos compreender a sua obra. E tirar dela novas pistas de proveito pessoal.

Não é um filme fácil, evidentemente. Nunca seria um filme fácil quando a premissa é realizar umas dezenas de minutos de cinema sobre a árvore da vida, sobre uma ideia tão complexa quanto a ligação em rede de toda a vida na terra e no cosmos, desde o início dos tempos. Claro que esta enunciação apenas bastaria para explicar e convocar os dinossauros - protagonistas de um dos momentos mais importantes e glosados da História Universal. Mas deixemo-nos de pormenores chatos.

A árvore da vida, mais do que qualquer outro filme de Malick, malgré Pitt&Penn, nunca será uma obra de grande consumo ou luminosa compreensão. E não é porque exista uma larga mole de pobres diabos que não a alcança mas, simplesmente, porque as folhas mais jovens da árvore da vida verdejam a um ritmo que é contrário a uma certa contemplação exigida para digerir a totalidade desta obra. Como, aliás, acontece como muitas outras obras, desde A Guerra do Peloponeso de Tucídides, passando pela Crítica da Razão Pura de Kant, até a Naming and Necessity de Kripke. Quem os leu na íntegra? E mais do que uma vez?

É, pois, compreensível, que para pessoas de tal natureza, o filme seja uma estopada e os dinossauros estejam deslocados (lá no Jurrassic Park é que eles estão bem, pá!). A vida não está para filmes destes.

Para estas pessoas tenho, contudo, uma palavra de esperança: esperem pela versão apontamentos Europa-América de A Árvore da vida.

DM

Comentários

noite americana disse…
Touché, Domingos. Acrescento que, há dias, um colega me desabafava que lhe tinham dito que aquilo ("aquilo" é o "Tree Of Life" não narrativo) pareciam imagens do Windows Media Player.
Palavras para quê?
Forte abraço!
AB
noite americana disse…
Touché, Domingos. Acrescento que, há dias, um colega me desabafava que lhe tinham dito que aquilo ("aquilo" é o "Tree Of Life" não narrativo) pareciam imagens do Windows Media Player.
Palavras para quê?
Forte abraço!
AB
Ines Cisneiros disse…
o que me chateia (e eu não tenho Malick nos favoritos) é que se disseminou a ideia de que o filme é mau, pelo menos entre as tais folhas mais jovens :P. e, de repente, não vale sequer a pena ver porque "afinal diz que é uma grande seca" e aumentamos a bola de neve.

P.S: por momentos ia jurar que tinha isso dos apontamentos Europa-América, mas do próprio Jurassic Park xD...

(fui confirmar e afinal é só o livro do filme em inglês, mas teria a sua graça).
noite americana disse…
Alex, tenho ouvido o mesmo. Quando nos encontramos? Faz lobby com o teu irmão... ;)

Inês, isso é terrível mas confirma a minha ideia... é pena.

Beijos e abraços,
DM

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