como o mundo mudou e voltou ao mesmo sítio


Estreias: CARLOS

De: Olivier Assayas

Com: Édgar Ramírez, Alexander Scheer, Alejandro Arroyo

Seco, frio, directo ao assunto. Provavelmente, é isto que se pede a um terrorista, mas falamos de um cineasta: Olivier Assayas, o realizador que encontrou a melhor forma de contar a história do Chacal: a objectiva. Carlos poderia ter sido demonizado, endeusado, compreendido, explicado com traumas de infância, aligeirado como estrela pop, adornado com interesses amorosos ou afins. Seria tão fácil cair em tentação, mas Assayas não se deixou seduzir. Carlos não é uma personagem ficcional nem um mito; é real e está vivo, algures numa prisão francesa, até ao fim dos seus dias. Por mais icónico que seja, não deve ser romanceado. É uma personagem-chave da história recente do mundo e ajuda a lembrar os mais distraídos que o terrorismo não começou com Bin Laden nem acabou com um cadáver no fundo do mar.

“Carlos”, que deliberadamente deixa cair o cognome de “Chacal” tanto no título como decurso do filme, foi concebido para ser mini-série de televisão e filme de grande ecrã. A versão integral de cinco horas e meia mostrada em Cannes não é a que estreia em Portugal; aqui, só chegam duas horas e quarenta e cinco – mas duas belíssimas horas e quarenta e cinco. Num fôlego, num só salto da ascensão à queda dum terrorista (ou, na versão do próprio, dum “soldado anti-imperialista”), corremos por mais de vinte anos, oito idiomas e um número incontável de países, do planeta de sombras da guerra fria a um fim de século onde meio mundo tinha a mão estendida a outro meio e os fantasmas deixaram de ter onde se esconder.

Começamos no início dos anos 70, quando o jovem venezuelano Ilich Ramírez Sánchez, futuro Carlos, dá os primeiros passos na subida ao contra-poder. Desde os primeiros atentados, revela-se carismático, determinado e comprometido, mas, de igual modo, cruel, desumano e megalómano. Mata e destrói sem pestanejar, vai-se tornando uma lenda e parece apreciá-lo. Entre o sucesso que faz com as mulheres (a expressão “bomba sexual” dificilmente se aplicará melhor a outra pessoa), escapa por pouco à polícia, foge e torna-se mais forte. Escala até ao topo da confiança dos líderes das grandes redes terroristas e em 1975, Viena, lança-se ao célebre ataque à cimeira da OPEP.

Cada vez mais cheio de si, cheguevarando progressivamente a figura (os revolucionários sabem da importância duma boa fotografia), vai-se desmascarando como ingénuo perigoso. Demasiado vaidoso para ser um mero operacional, tenta compor a sua própria organização. Anda pela Alemanha, Hungria, Líbano, pelo mundo inteiro sem perceber que esse mesmo mundo está em transformação e não é por sua causa. Porque, no fundo, Carlos não foi diferente de tantos outros românticos: também ele achou que poderia mudar o mundo – neste caso, terraplanando-o à bomba para depois construir um novo de raiz.

Olivier Assayas não se perde, no fim, em dissertações sobre a hipotética moral de tudo isto. A sua ambição é outra, é grande e constitui um marco para o cinema europeu. Dá-nos a História, dá-nos o mundo que temos, um mundo onde a hipocrisia, por vezes, salva mais vidas que certas formas de coerência, e dá-nos Carlos. Afinal, todo este investimento, toda esta escala, de nada serviriam se não fossem carregados em ombros por Édgar Ramírez, rapaz que começou nas telenovelas venezuelanas e sai daqui como super-estrela em potência. O verdadeiro Carlos, aliás, viu o filme e apontou imprecisões históricas, mas, em relação ao seu duplo cinematográfico, nem um reparo.

Em breve, há-de começar a chuva de filmes sobre Bin Laden. Só duvidamos de que haja muitos Assayas para os tratar com tanto cérebro e tanto músculo.

AB

i, 2011.06.02

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