portugal a preto e branco
Estreias: VIAGEM A PORTUGAL
De: Sérgio Tréfaut
Com: Maria de Medeiros, Isabel Ruth, Makena Diop
Foi depois da estreia de “Lisboetas”, em 2004, que Sérgio Tréfaut se propôs filmar interrogatórios nos aeroportos nacionais. Pediu autorização ao SEF, mas a resposta nunca chegou. Talvez outros documentaristas tivessem ficado por aí; Tréfaut decidiu que, se não podia filmar a realidade, filmaria uma ficção sobre essa mesma realidade. Mesmo que tudo tivesse corrido mal, só por isto já seria digno de elogio.
No entanto, nada correu mal. A estreia de Tréfaut nas longas-metragens de ficção não se confunde com nenhum outro filme. Tem identidade, arrojo, forma e substância. No panorama cinematográfico português, não é dizer pouco.
Estamos no último dia do ano. Maria, uma mulher ucraniana (Maria de Medeiros mais do que convincente, contundente) aterra em Faro. Os outros passageiros saem, mas ela fica retida. A partir daqui, inicia-se um penoso interrogatório dirigido por uma inspectora (Isabel Ruth) que vai atrasando o jantar de família para decifrar se aquela mulher que chega com visto turístico vem, como alega, visitar o marido ou se é mais uma ilegal destinada à prostituição. É um diálogo de surdos entre uma mulher que fala Português e outra Ucraniano, polvilhada de meia dúzia de termos arranhados em Francês ou Inglês. Uma conversa sem saída, claustrofóbica como o espaço em volta, cada vez mais desconfiada e fria. Até que Grego, o marido de Maria, aparece: um homem negro, senegalês. E Portugal torna-se cada vez mais preconceituoso e distante, as paredes brancas apertam-se ainda mais só deixando uma porta: a saída, o regresso à Ucrânia, sem Natal nem Ano Novo.
Claramente com poucos meios, Tréfaut tem o bom gosto de fazer simples e belo. O elenco tem apenas 17 nomes; cenários serão meia dúzia; a duração fica pela hora e um quarto. Não é preciso mais. Há uma fabulosa fotografia de Edgar Moura a servir estes elementos escassos, certeiros. Um preto e branco onde a perfeição se confunde com a frieza, a higiene com loucura, onde nada pode ser escondido e só o essencial emerge, sem ruído. Um preto e branco onde não se reconhece Portugal algum, tal como Maria não chegará a ver Portugal. Não irá além de uns cubículos de aeroporto, celas imaculadas sem pecado nem história.
Há algumas pequenas incongruências a apontar – Grego desliga o telemóvel quando a mulher mais precisa dele, o Benfica que está a jogar dia 1 de Janeiro, ainda por cima por volta do meio-dia – mas nada que ponha em causa este sólido conto visual.
Onde “Viagem A Portugal” não parece tão perfeito é na moral – e o filme tem uma moral a pregar. O caso de Maria e Grego, casal de médicos, ela ucraniana, ele senegalês, é inspirado num episódio real. Episódio esse, dizem os responsáveis pelo filme, escolhido de modo deliberado por nem ser dos mais graves em aeroportos nacionais. “Viagem A Portugal” quer levantar essa discussão, falar desse tratamento desumano, desses preconceitos. É um filme comprometido, ideológico. Está no seu direito. Mas o público também estará no seu direito se discordar. Se compreender a desconfiança das autoridades. Se tiver dificuldade em aceitar “Viagem A Portugal” como retrato dum país onde, felizmente, não faltam imigrantes.
Desde o primeiro momento, Tréfaut está do lado de Maria e Grego. Faz-nos detestar todos aqueles cruéis portugueses incapazes de um pingo de solidariedade. O único laivo de compreensão vem dum tradutor ucraniano. E esse maniqueísmo incomoda. Se “Viagem A Portugal” fosse um filme estrangeiro, dificilmente o perdoaríamos. Mas é um filme português. Um filme financeiramente apoiado, aliás, por esse Estado que tão mal deixa no retrato.
AB
i, 2011.06.16
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