isto não é um filme de verão
Estreias: MATAR PARA VIVER
De: Jerzy Skolimowski
Com: Vincent Gallo, Emmanuelle Seigner
Diz a canção que é Verão e a vida é fácil, os peixinhos saltam e tal. Talvez. Para os cinéfilos, contudo, é uma boa altura para ficar em casa a ver dvds. Ou ler livros.
A temporada de veraneio arranca oficialmente hoje nas salas de cinema e não deixa ilusões quanto a muito do que por aí vem: estreiam alguns dos espécimes mais fraquinhos do ano duma só vez. Porventura assim doerá menos.
Contudo, escondido entre a fruta de época, está um filme de outras colheitas. Vem do frio da Polónia e talvez por isso tenha crescido mais duro, mais difícil, melhor. Há-de se ter arriscado a seguir directo para os escaparates de dvd, onde ficaria condenado ao olho clínico de alguns compradores treinados. Assim, com direito a cartaz, sempre enche mais a vista, ainda que certamente não o aguardem mais do que umas breves semanas de exibição.
“Matar Para Viver” é um filme de Jerzy Skolimowski. E Skolimowski é um autor de quem começámos a saber notícias enquanto argumentista de “A Faca Na Água”, de Roman Polanski, de quem é amigo, e que seguiu viagem como director em “Le Départ”, “O Uivo” ou “Moonlighting”. Em 2008, depois de 17 anos de desaparecimento, regressou com “Quatro Noites Com Ana”, declarando então qualquer coisa como: “Para quem gosta de mim, estou de volta. Para quem não gosta de mim, estou de volta”. Breve, claro como água, um pouco pretensioso, mas poucos se podem dar ao luxo de dizer uma coisas destas sem soarem ridículos.
“Matar Para Viver” não é pretensioso. Aliás, podemos colocá-lo ao lado de obras verdadeiramente pretensiosas e compará-los: onde outros escolhem atirar-se a guerras inteiras e projectar-lhes uma moral, Skolimowski fica-se por uma só história e um só homem. Leva-o ao limite, mas respeita esse limite. Não salta a cerca para fazer julgamentos sobre a guerra ou a política mundial.
Aqui, há uma guerra, a do Afeganistão, mas é apenas um pano de fundo, um ponto de partida. O que importa é Mohammed, um soldado afegão que começa o filme a fugir de qualquer coisa e que acabará a fugir para qualquer coisa. Sejamos mais específicos: começa a fugir da morte, acaba a fugir para a vida. Ou, pelo menos, por ela. Em nome dela.
Entre um momento e outro, Mohammed deixa de ser homem. É um animal. Ou é o animal que, em última instância, todos os homens são. Tem fome e sede, luta por instinto de sobrevivência, escolhe um rumo por instinto de casa, mata ou ataca por instinto de defesa. Ele fala a língua dos homens, mas os homens falam demasiadas línguas. Capturado nas áridas montanhas do Afeganistão pelo exército norte-americano, é transportado para uma base em parte incerta, algures na Europa. Solta-se e enceta a fuga por paisagens desconhecidas, cobertas de neve, cenários de uma perfeição que já ali estava antes e continuará depois, indiferente à guerra, sem tomar partido por qualquer parte em contenda. A paisagem torna grandioso o esforço de Mohammed em querer viver e, ao mesmo tempo, descobre-lhe o absurdo. As pegadas daquele homem desaparecerão com a próxima neve. Até as manchas do seu sangue serão apagadas da face da terra pouco depois de ali ter passado.
Vincent Gallo é Mohammed. Um homem quase sem palavras, só gritos de dor, gemidos de desespero, um olhar aflito de criatura acossada. Um órfão provocado pela guerra, mas que não é tomado nem por vítima nem por culpado. É um facto, um fenómeno, um bicho que, como todos os outros bichos, quer, acima de tudo, viver.
Este não é um filme de Verão. É um filme para os invernos profundos. Sobretudo os da – perdoem o palavrão – alma.
AB
i, 2011.06.23
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