A vida é um jogo de computador e eles querem jogá-lo
Estreias: SCOTT PILGRIM CONTRA O MUNDO
De: Edgar Wright
Com: Michael Cera, Mary Elizabeth Winstead, Kieran Culkin
Ou andamos a envelhecer ou há aí muita gente que anda a ficar mais nova. Em tempos que pensávamos recentes, mas que são talvez já imemoriais, James Dean ou Marlon Brando representavam heróis de 18 anos, acabadinhos de se fazer homens, mas já de barba rija, em luta – essa sim – contra o mundo. Tinham de trabalhar duro e arranjar dinheiro, encontrar mulher e casar, rebelar-se contra pais, patrões e sociedades. Passeavam semblantes duros, rebentavam em choro quando não suportavam mais, carregavam uma aura de angústia e tragédia.
Hoje, não. Hoje, o cinema pode representar um herói de 23 anos como um imberbe liceal que está tudo bem. Não é erro do filme; bate certo com o mundo em volta. Um imberbe ocupado com a banda de garagem, a namorada de 17 anos, a casa partilhada com um amigo igualmente imberbe, roupa de adolescente e causas soberanas como a luta contra os ex-namorados da nova namorada. Adeus, Jim Stark. Até sempre, Terry Malloy. Olá, Scott Pilgrim. Vai uma limonada?
A novela gráfica anda com mais saída no cinema que o balde de pipocas. Só nas últimas semanas, foram três adaptações a chegar às salas portuguesas: “Red – Perigosos”, “A Lenda Dos Guardiões” e, agora, “Scott Pilgrim”, de Bryan Lee O’Malley – já disponível num balcão dos CTT perto de si. De todas elas (justiça seja feita a Edgar Wrght), é Pilgrim quem melhor tira partido da herança genética. Funciona aos quadradinhos, usa e abusa das legendas, estampa onomatopeias no ecrã. É divertido, novo, dá-lhe carácter – que bom teria sido ficar por aí, enquanto lembra um lado B de “Kick-Ass”. Mas está-se mesmo a ver que não ficou. Acelerado, alucinado, talvez até um pouco imaturo, à imagem do protagonista, não soube quando parar e transformou-se num jogo de computador. Será que a história de um rapazinho comum, que tem uma banda à procura do estrelato, que partilha casa com um amigo gay e vive os dramas mais ou menos normais do jovem rapaz que procura rapariga para relacionamento sério, precisava da estética de consola para ser contada? Isso não devia ser só para canalizadores que perseguem cogumelos? Carros que se transformam em robôs?
Sim, continuamos a envelhecer a cada minuto que passa. Nós que até somos do tempo em que já se adaptavam personagens de jogos de computador a filmes com pessoas de carne e osso, não nos sentimos preparados para ver pessoas de carne e osso transformadas em bonecos de jogos de computador.
“Scott Pilgrim Contra O Mundo”, que está belissimamente escrito, que metralha boas piadas a velocidades anteriormente só possíveis a Quentin Tarantino, que reúne um simpático ensemble de actores (ainda têm todos de mostrar o b.i. à porta dos bares, mas são bons – vide Anna Kendrick), esvai-se debaixo de um delírio electrónico de PlayStation com aditivos. Scott Pilgrim não percorre o arco da personagem; ele salta níveis. Não enfrenta conflitos; está metido no “Street Fighter”. Ele não defronta o mundo, como garante o título; ele tem de derrotar, um a um, sete personagens esquizóides que, em tempos e à vez, namoraram com Ramona, a moça cool por quem Scott está embasbacado. Esses encontros não são discussões, nem argumentações, nem jogos dramáticos, nem acções, nem cinema; são números de pancada que Edgar Wright não realizou de câmara na mão, mas de joystick.
No tempo de Jack Kerouac, no tempo de Dennis Hopper e Peter Fonda, no tempo de muita gente depois dessa, a vida, clamavam os rebeldes, eram uma auto-estrada que queríamos percorrer. Hoje, Dezembro de 2010, é um jogo de computador que alguns querem jogar. Bom serão para eles. Game over para nós.
AB
i, 2010.12.08
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