um anacrónico amor pela verdade


LIGAÇÕES PERIGOSAS
Realização: Kevin Macdonald
Com: Russell Crowe, Ben Affleck, Helen Mirren

Senhoras e senhores, é um prazer anunciar-vos que estamos diante dum sólido thriller de espionagem, romântico, old school, em que os jornalistas são heróis em busca da verdade. Se gosta do género, é valor seguro; se não gosta, não é aqui que vai mudar de ideias. Mas ponhamos a coisa doutra forma: não sendo uma obra-prima, “Ligações Perigosas” está tão bem amarrado, tão seguro, que até Ben Affleck vai, digamos, bem.
O problema é o título português. Se os direitos de autor funcionassem algures, os descendentes de Choderlos de Laclos estariam milionários, só à conta dos royalties vindos de Portugal. “Ligações Perigosas” e variações do mesmo mote têm dado para tudo. Filmes de espionagem, filmes eróticos, filmes em geral. Até porque todo o filme tem relações conflituosas entre personagens. Caso contrário, não tinha argumento. E é verdade que já se fizeram uns quantos filmes que pareciam não ter argumento, mas voltemos ao que importa ou já não saímos daqui.
“State Of Play” adapta a Londres da mini-série original da BBC e de Paul Abbott à capital norte-americana e à redacção do diário Washington Globe. Nos primeiros instantes, a bela Sonia Baker (Maria Thayer) morre misteriosamente nos carris do metropolitano. Sonia era funcionária de Stephen Collins (Affleck), jovem turco do Congresso a conduzir, presentemente, uma mediática investigação à PointCorp, empresa que faz negócio da Guerra, engrossando as fileiras do exército americano com militares profissionais, barra mercenários, barra soldados que não lutam por uma bandeira ou pela paz, mas por um ordenado. Pouco depois, sabemos que Sonia e Collins eram amantes, que Collins e o jornalista Cal McAffrey (Crowe) são amigos de longa data, que o Washington Globe para o qual trabalha Cal luta pela sobrevivência financeira, e que algo mais liga Cal a Collins e que esse “algo” não é necessariamente bom.
Russell Crowe, num papel que esteve para ser de Brad Pitt, compõe a figura clássica do jornalista cinematográfico que nos fez, durante anos, sonhar ingenuamente com uma nobre carreira na imprensa. Caótico e obstinado, temperamental e justo, a comer mal e a más horas, com um carro velho e uma secretária que é uma espécie de reconstituição à escala do caos após o Big Bang. Ele é o repórter da velha guarda, cheio de fontes e segredos, e é o porta-estandarte que carrega a bandeira do filme: uma declaração de amor condenada à morte. A declaração de amor à imprensa escrita, à maneira antiga, contra os blogues e os sites e o mais que vier.
Mas Crowe é só o ponta-de-lança de um plantel de luxo: Helen Mirren como editora da linha dura, Jeff Daniels congressista ínvio, Rachel McAdams a jovem jornalista das novas tecnologias, Robin Wright Penn, Jason Bateman, etc.
Porque, também na sua forma, “State Of Play” é um conservador: um bom filme faz-se com bons actores e uma boa história. O resto é, citando, a despropósito, Luiz Felipe Scolari, conversa para boi dormir.
Com texto co-assinado por Tony Gilroy, da saga Bourne, de “O Advogado Do Diabo” e de “Michael Claytou” e fotografia de Rodrigo Prieto, “State Of Play” é, sobretudo, uma boa notícia para os saudosistas do policial anterior a telemóveis, satélites e gps. É um anacronismo em relação ao próprio Cinema, claro, mas, sobretudo, em relação ao mundo. E não haverá muitas coisas mais cool que estar, tão orgulhosamente, fora de moda.

AB

i, 2009.06.19

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