o amor nos tempos do download


ZACK E MIRI FAZEM UM PORNO
Realização: Kevin Smith
Com: Seth Rogen, Elizabeth Banks, Traci Lords


Vivemos tempos difíceis. O futuro imediato do País parece refém de um karateka português na China, um preso preventivo é mais credível quando fala do que um Conselheiro de Estado, o Verão está pela hora da morte e o Benfica ficou outra vez em terceiro. Mas é uma das magias do Cinema – o seu completo autismo, o existir tão absolutamente alheado das notícias de jornal. Quando quase tudo o que é bom rareia, estreiam sete filmes numa só quinta-feira – um pequeno luxo, sobretudo quando há, como há, vários candidatos a prato principal no menu. Do promissor “Deixa-me Entrar”, de Tomas Alfredson, a “As Minhas Estrelas”, segunda estreia de Catherine Deneuve em duas semanas consecutivas.
Mas, ao olhar o cartaz, é impossível que a nossa atenção não se desvie, prontamente, para um título: “Zack E Miri Fazem Um Porno”. Porquê? Razões da complexidade da psique humana.
“Zack E Miri Fazem Um Porno” poderia ser só um título bem esgalhado. Mas não é. É um improvável filme pornográfico de amor. Ou melhor: um filme romântico-porno. Ou melhor ainda: a comédia romântica do ano, a partir da pornografia.
Zack e Miri são amigos desde sempre. Vivem juntos numa casa arrendada e quartos separados e nunca lhes passou pela cabeça apaixonar-se um pelo outro ou irem juntos para a cama. Não há química nem ciúmes nem esqueletos no armário. Já conhecem a intimidade menos romântica de cada um – a das manhãs, das ressacas, da normalidade e das casas de banho. O oposto do desejo. Até que, um dia, quando os seus ordenados de fura-vidas não chegam já para as contas e água e luz lhes são cortadas, decidem – e, a partir daqui, o título conta a história – fazer um filme porno.
Podíamos dizer que o filme não é gratuito, mas é. Tudo o que acontece, todos os obstáculos que saem ao caminho dos protagonistas, servem um desenrolar de acontecimentos óbvio e obrigatório na cabeça do argumentista / realizador Kevin Smith. Mas é um gratuito tão franco, tão descarado, que não se consegue dizer-lhe não. É descaramento, lata, e todos sabemos como essas virtudes abrem portas a quem as tem.
“Zack E Miri Fazem Um Porno” é tão desassombrado, vive tão bem com o seu gosto, que não pode ser mau gosto. Está para além disso. E para além da moral. É deliciosamente maduro na sua irresponsabilidade. Não trata a pornografia como um gueto, não a esconde atrás daquilo que, afinal, a torna objecto de desejo. É tão descomplexado e bem-disposto com as suas perversões, tão tranquilo com a sua intimidade de latrina, que se torna surpreendentemente confortável, limpo e – por que não dizê-lo? – cândido.
Tem o atrevimento de um “Felicidade”, de Todd Solondz, ou de um “Eu, Tu E Todos Os Que Conhecemos”, de Miranda July, mas, ao contrário destes, só quer ser um “feel-good movie”. E é, sem dúvida, o “feel-good movie” dos últimos tempos.
Com as profissionais do porno Traci Lords e Katie Morgan num elenco de actores razoavelmente desconhecidos entre nós, mas com culto numa certa cena indy americana, “Zack E Miri” alterna momentos absolutamente hilariantes com uma improvável tese acerca do romance, a partir do plateau dum filme pornográfico low-budget.
Se o filme não vai mais longe, é porque, a dada altura, se compraz com a sua invulgaridade e deixa de tentar surpreender, deixando o último terço correr ao sabor de um desenlace mais que esperado. Afinal, depois de arriscar o que arriscou, Kevin Smith bem se podia ter aventurado a um final mais épico, mais pornograficamente belo, em vez de uma solução a saber, por paradoxo que pareça, a telefilme para toda a família num sábado de chuva.
Em todo o caso, “Zack E Miri” é “one of a kind”. Não é obrigatório, mas quase.

AB

i, 2009.05.28

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