tarantino e a invenção do mau melhor que bom


Será, talvez, difícil explicar, um dia, aos nossos netos por que era Tarantino tão bom. Mostrar-lhes-emos as fitas cheias de pormenores kitsch, acabamentos técnicos aparentemente deficientes, recurso a métodos há muito ultrapassados, até a cada vez mais evidente ausência de um verdadeiro ‘plot’, sacrificado a uma permanente lógica de duelo, ora corporal, ora dialéctico, tendencialmente, à mesa do café. Será o futuro capaz de compreender a grandeza dum realizador que se compraz em brincar ao passado? Ainda por cima, ao passado demasiado recente, não clássico, não eternizado? É um risco que Tarantino corre. Mas será que o preocupa? Será que o homem que se voluntaria para realizar episódios das séries de televisão de que gosta, aceita fazer perninhas nos filmes do sobrevalorizado e inferior amigo Robert Rodriguez e rodar e obras de cinco horas, independentemente dos critérios de exibição comercial das distribuidoras, se importa realmente? Quererá ele ser lembrado? Mumificado? Santificado?


Tarantino pode nunca ter saído do clube de vídeo em que trabalhava muito antes de conquistar o reconhecimento público e onde se apaixonou, para sempre, pelo cinema. Os seus dias continuam a vir das décadas de 70 e 80, talvez emagrecendo o calendário do passado, roubando páginas aos manuais de História, encolhendo a linha do tempo por uma manga. A sua tecnologia, no fundo, ainda é o VHS. Até os seus actores – John Travolta, David Carradine, Kurt Russell – esperaram por ele muitos anos até regressar ao espaço nobre dos letterings dos cartazes promocionais. Mais que isso, Tarantino vive longe do normal ciclo da ressurreições, da roda grande da moda, do chique, do retro-não-sei-quê. Nos serões em que os amigos gostam de recordar as canções e desenhos animados que viam no seu tempo, ele é, provavelmente, o que evoca aquilo de que nunca ninguém se lembra ou cita, em êxtase, as imagens e sons que todos os outros se haviam obrigado a esquecer. Ele cresceu com fitas low budget, feitas para os rapazes verem nas tardes de domingo, na matinée ou no sofá; agora, adulto, devolve, gratamente, o prazer. Faz fitas low budget com dinheiro; para os rapazes verem nas tardes de domingo ou outro dia qualquer, preferencialmente acompanhados pelas raparigas, porque ele lhes acrescentou o bom gosto da inteligência e do sentido de humor.

Estamos – isso é cada vez mais claro – diante dum director especial, indiscutivelmente dos mais interessantes da última década, mas tornou-se indiscernível se Tarantino segue no caminho certo. O que os dois volumes de Kill Bill prenunciavam e, agora, Death Proof vem confirmar, é que esse soberbo realizador de que falamos prefere o comprazimento na minuciosa concepção de grandes filmes maus. Kill Bill I & II era um banquete; Death Proof é uma boa barrigada de vídeo e diversão. Mas que bom seria se Tarantino, de repente, dissesse: “Ok. Agora a sério”. Se se aplicasse um pouco mais; se ambicionasse a mais que o VHS perfeito. É como se – para traçar um paralelo – os Rolling Stones, de repente, decidissem fazer o melhor tema foleiro de sempre. Cheira a desperdício. Sabe a desperdício. É, muito provavelmente, um desperdício.

Death Proof, como é razoavelmente sabido, é parte emancipada do díptico projectado com o já referido amigo Rodriguez e intitulado, de modo muito sugestivo, Grindhouse. A reacção em Cannes não foi a melhor e, um pouco por todo o lado, optou-se por destilar o Tarantino de Planet Terror. A sinopse é pouco mais que insignificante: um duplo do cinema, Stuntman Mike, diverte-se a perseguir jovens raparigas com o seu carro alterado para as sequências de acção, eventualmente até à morte. Dentro de Death Proof, cabem mais dois filmes de grande entretenimento separados (ou cosidos) por um momento de verdadeiro terror e que correspondem aos grupos distintos de raparigas na mira de Stuntman. Há cenas maravilhosamente filmadas e orquestradas, com grande banda sonora e actores a seduzir, como raras vezes se viu, a câmara e, desde logo, o espectador: o lap dance de Butterfly, a perseguição final de Stuntman, com o incrível número de equilibrismo de Zoe Bell (a dupla de Uma Thurman em Kill Bill e verdadeira heroína de Death Proof).

Desde o início que Tarantino se diverte com citações da história do cinema, mas, desta feita, optou por calibrar o espectro: é a sua própria obra que está em constante rodapé à acção: nas cores, nas roupas, nas canções, nos nomes dos sítios e até na pequena personagem de Jasper.

No fim, sai-se atarantinado, como sempre. Mas sente-se saudades de Reservoir Dogs e Pulp Fiction. Muitas. Sobretudo, à medida que os dias passam, a recordação se desvanece e percebe o pouco que há de verdadeiramente memorável na arte transitória do passatempo.

AB


[originalmente publicado na revista Atlântico nº 30]

Comentários

Menphis disse…
No ténis sabemos que Federer é o melhor tenista, mas acabamos por gostar de Nadal por causa da paixão pelo jogo e a sua garra que ele demonstra quando faz os seus jogos.

No cinema, para mim, Tim Burton é o melhor mas adoro Tarantino porque ele transmite a sua paixão pelo cinema em todas as cenas e em todos os filmes que faz.

não sei se é o melhor exemplo, mas é o que me ocorre de momento...
Anónimo disse…
É um exemplo óptimo - de facto, é por essa paixão evidente que Tarantino é especial e que o saberemos explicar a quem venha depois. Obrigado, Memphis. Um abraço!
Anónimo disse…
É um exemplo óptimo - de facto, é por essa paixão evidente que Tarantino é especial e que o saberemos explicar a quem venha depois. Obrigado, Memphis. Um abraço!
purita disse…
é a cena da perna...é a perna!!!:)
ah isso e a violência gratuita!


(http://purita.blogspot.com/2007/07/perna.html) se quiser...
Anónimo disse…
A perna é do "Planet Terror", do Rodriguez, não do "Death Proof", Purita. Mas vamos dedicar-lhe um texto próprio, mais dia, menos dia.
purita disse…
desculpe, talvez não tenha visto bem a cena do primeiro acidente...é a essa perna que me refiro, uma das miudas é praticamente esquartejada, aliás, elas são todas..:)

ps. a perna do outro filme é um disparate pegado.
Anónimo disse…
certíssimo, purita. esquecera-me, imperdoavelmente, dessa perna. Quanto à perna-metralhadora, ainda não tenho opinião, mas temo que venha a coincidir com a sua.

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