The Brave One - II - A Estranha em Mim

Devo começar por congratular quem quer que seja que tenha tido a ideia para o título português. Por uma vez, um título que, afastando-se completamente da literalidade consegue mesmo assim manter-se (ou até ir mais fundo) no âmago do filme. Aliás, poder-se-á mesmo dizer que o título português que a corajosa é a estranha em si. E essa é exactamente a primeira dimensão que me interessa sublinhar neste filme de Jordan e Foster. Não tanto o Outro, que já aqui tantas vezes glosei, mas uma espécie especial de outro, O estranho de si. Em bom rigor, o fillme The Brave One contém vários estranhos de si, mas eu destaco dois: aquele que dá origem ao título - a corajosa Erica que surge da violência, da tragédia e do medo - e a anterior Erica, que, por confronto com a nova, se torna uma estranha de si mesma. Ambas convivendo com o mesmo corpo, como a dado passo do filme, Foster relembra.
É talvez o tema que mais me interessa: os eus que carregamos, as possibilidades que ora encerramos (e mesmo desconhecemos) ora libertamos, muitas vezes com a surpresa de ignorarmos a sua existência em nós. Neste plano o desempenho de Foster é algo de absolutamente extraordinário, como há muito não via. A sua capacidade para segurar a personagem e mantê-la como algo credível e empático é um feito ao alcance de poucos, a confirmar aquilo que dizia no texto anterior, sobre a importância determinante de Foster para este papel. O que encontramos em The Brave One é o despertar de um Outro, baseado no mais irrepreensível cliché: se o eu, construção paciente e demorada um dia te falha e não te serve, arranja outro. Eis Erica Bain, eis Jodie Foster. Eis the Brave one surgindo. Essa metamorfose epifânica não é obviamente um parto fácil: não oferecemos do corpo um corpo outro ao mundo, é o nosso corpo que se divide e torna o corpo do outro. Mais, entre o eu e o outro passa a haver uma luta identitária que pretende estabelecer, refundar, uma nova perspectiva sobre quem sou eu, quem é o outro. Esta luta não é menor. E o filme dá-lhe alguma importância, de um modo de que muito gostei. O eu original, que depois do incidente aos poucos corre o risco de se tornar o outro de The Brave One, é um eu que Foster relembra como bom e doce. Era o eu apaixonado e já dedicado a um outro, não um outro de si, mas a um outro amante, a namorado com que se ia casar. A dado momento Foster lembra um tipo de mudança que não é a mais comum nas histórias representando casais: é comum mostrar-se ou referir-se aquilo que em casal nos torna pior e descura-se, por vezez, aquilo que o outro, em casal, nos torna melhores. Foster começa, com a emergência da estranha em si, a sentir saudades dessa melhor parte de si.
Filme sobre a mudança interior - talvez a mais difícil de exprimir em qualquer forma de arte - este é igualmente um filme sobre a mais terrível das mudanças interiores, uma que se faz contra nós mas exactamente porque nós não a faríamos e exactamente porque só ela - essa mudança específica - nos pode salvar.
DM

Comentários

Barreira Invisível Podcast