Ratos e homens


Pensemos no cinema de animação como os U2 e na Pixar, em particular, talvez como Bono Vox. Houve uma altura – uma altura larga – em que tudo o que vinha dali era bom. Depois, começou a fartar. Terá deixado de ser bom? Talvez não. Mas era aborrecido, demasiado correcto, sem “thrill”. Começou aí há uns 15 anos, quando a Disney desatou a refazer os seus clássicos. Os filmes de animação passaram a dispor de tempo de antena cativo na noite dos Óscares e a levar, inevitavelmente, para casa, o troféu referente à melhor canção original (em princípio, uma coisa cantada pelo Phil Collins ou pelo Elton John, acerca de que como podes ser tudo o que quiseres, contando que acredites). Os filmes eram bons, ditos para toda a família e já não apenas para crianças, vieram companhias rivais, anos mais tarde a Dreamworks, a própria Pixar, a aquisição desta última pela dita Disney; passou a ser normal haver um, dois títulos de animação, em permanência em cartaz, em qualquer mês do ano e já não apenas naquela amálgama mais ou menos confusa e colorida de ambientes que sempre antecede o Natal.

Houve coisas muito boas, houve. O Rei Leão, o Monster Inc., os dois primeiros Shrek, os Toy Story, uma série de outras. Mas veio – tem vindo a vir – muito gato por lebre, muita demagogia, pior: muito filme absolutamente bocejante do outrora excelente Robert Zemeckis, anunciado como grande novidade da técnica por causa da tal técnica que, afinal, só encobre a preguiça, de mimetizar electronicamente os movimentos de seres humanos reais. Foi como os U2. Até ao Achtung Baby, tudo bem. Não. Até ao Pop. A partir daí, tem vindo muita estucha disfarçada de grande malha rock.

A Pixar, concluindo esta brilhante analogia que tão gloriosamente nos ocorreu a princípio e que agora temos de patrocinar até ao fim, é o Bono. Aquilo vem sempre tudo tão bem feitinho que irrita. Quando o raio do candeeiro começa a saltar para cima do logo inicial, apetece dar-lhe um pontapé e partir uma lente aos óculos “fly” do senhor Vox. Agora, pede qualquer coisa para ti e deixa lá África, irra.

Pronto. O problema é ter de reconhecer que o tipo voltou a fazer uma grande canção, quando ele voltar a fazer uma grande canção, mesmo a ver pior dum olho. Tal como a Pixar. Acabámos de lhes partir o raio do candeeirinho saltitão e eles dão-nos com o Ratatouille. E o Ratatouille é, caro leitor, um presente, um carinho que só se faz entre amigos. É mais ou menos de maneira que, no final, não estivéssemos tão movidos pela fome despertada pela película e, portanto, já em plena marcha para os morfes mais próximos, diríamos: “obrigado”. Isto é, não é daqueles que apetece aplaudir, no final. Apetece é dizer: “obrigado”. Porque foi tudo feitinho para nós: o entretenimento, o riso, a quase lagriminha ao canto do olho, todas as pequenas delícias de história, personagens, movimentos, ambientes, referências. Um luxo.

É que a animação, ao engordar, separou-se mais ou menos em duas: a cândida e inocente, dos grandes estúdios, destinada a miúdos, graúdos e maiores receitas publicitárias possível; e a supostamente adulta, rebelde, incorrecta, a funcionar, sobretudo, por contrario sensu com o conjunto de códigos e perspectivas que se esperariam, à partida, do género, para, portanto, os destruir (vide de Simpsons a South Park e todos os sucedâneos). No meio, restou Ratatouille e, com muito boa vontade, Shrek. Mas Shrek, o terceiro, falhou redondamente, foi menos do mesmo, agiu como se cá estivesse para sempre e mostrou ao que anda quando pôs em Justin Timberlake a sua grande novidade. Olhe-se para a ficha técnica de Ratatouille: o protagonista, Remy, tem voz de Patton Quem? Oswalt; Ian Holm é a segunda maior estrela convidada e, na fabulosa, mas secundária personagem do crítico Anton Ego, o grande Peter O’toole – não exactamente, convenhamos, um herói adolescente.

Explanado isto, fica clara, supomos, a atitude de Ratatouille, da Pixar e de Brad Bird, o argumentista e director que nos dera, há pouco tempo, o tão bom ou ainda melhor The Incredibles: não seguir nenhum dos caminhos mais fáceis. Nem o das vozes de super-estrelas. Nem a escolha entre uma das vias óbvias – candura ou rebeldia. Nem o espalhafato dos supostos grandes recursos técnicos, como se a animação fosse um salão da ciência. Nem sequer agarrar nos animais fofinhos, da moda, e pô-los a render. Sim, que isto o mundo já viu que tem uma coisa qualquer com animais: houve uma febre de dinossauros, depois uma de insectos, agora creio que ainda andemos na dos pinguins.

Ratatouille é sobre um rato. Ou melhor, uma série de ratos. Ratazanas. Primas muito, muito distantes, daquele ramo da família de que nunca mais se teve notícias do velho Mickey. Arrisca causar aversão no público e, sobretudo, coloca as ratazanas a agir como ratazanas: movendo-se como tal e sem falar inglês com os humanos. Do mais engenhoso que tem reside, aliás, nos modos que criou de pôr ratos e homens a comunicar, a coexistir, a olhar-se.

E é dos melhores filmes do ano. Ainda que não tenha canção para o Phil Collins.

AB

[publicado originalmente na revista Atlântico nº 31]

Comentários

purita disse…
é um filme amoroso, acho que é isso, é amoroso!

relativamente à animação, não gostei do shrek e quase me matam por isso!acho que nos melhores filmes está, sem dúvida, os the incredibles!nas melhores personagens de animação, os pinguins do madagáscar ganham, de longe!!!(sugiro que procure no youtube o episódio de natal dos pinguins, humor refinadíssimo)
Salomé disse…
Eu ainda não tive (arrisco dizer devido a vossa descrição) o prazer de ver este filme. Mas quanto a modas acho que desde do Mikey que os ratos nunca sairam de moda.. Todos eles amorosos mas já conto demais..
Super mouse, Ligeirinho, Timóteo Jerry, Fivel, Stuart Little...podiam mudar de animal de animação tal como inventaram o esquilo do ice age. Para mim, o melhor personagem de animação da actualidade!!

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