só para clientes habituais


A questão fundamental é Catherine Deneuve. Se quiséssemos dar uma pista num daqueles jogos de serão de inverno entre amigos, diríamos “Belle de Jour”. A resposta viria pronta: “Catherine Deneuve”. Ou o contrário: fosse a pista “Catherine Deneuve” e a solução do enigma não poderia senão ser “Belle de Jour”. Significa isto que Belle de Jour, o filme de Buñuel de 1967, tem em Séverine, a personagem interpretada por Catherine Deneuve, a chave da sua magia e que, portanto, não deveria fazer qualquer sentido revisitá-lo na ausência dela. Seria como ir ver os Stones no dia em que Jagger ficasse de cama, constipado. Passear pela Praça da Concórdia com a Torre Eiffel escondida por tapumes para obras de restauro. Isto pensamos nós. Mas Manoel de Oliveira pensou o contrário. E ele está a dois anos de fazer 100. É capaz de ser sensato dar-lhe algum crédito.

Belle Toujours, a homenagem a Buñuel e Jean-Claude Carrière, tem de saltar sobre esse pecado original: a recusa de Catherine Deneuve em regressar ao papel de 38 anos antes. A partir daqui, uma vez aceite que, às vezes, nem o cinema é capaz de eternizar o que a vida não autoriza, estamos livres para apreciar estes suaves 70 minutos de ironias, subtilezas e, por assim dizer, “manoeld’oliveirismos”. Não é para todas as bocas. Não tem de ser. Assim de repente, é o melhor filme daquele a quem agora, amiúde, se ouve tratar apenas por “mestre”, desde Vou P’ra Casa (será de Michel Piccoli?). Mas não é para ser levado demasiado a sério. Não parece ser esse o propósito do director e argumentista. Belle de Jour está lá, no seu lugar espaçoso na História do Cinema e Belle Toujours há-de ficar numa gaveta abaixo, com a dignidade dos “related articles”, o principal extra do DVD, qualquer coisa assim. É cinema fetichista, daquele que se compraz nas pequeninas coisas, nos luxos minúsculos, nos pormenores do corpo amado. Não tanto na nudez. Ou na beleza.

Henri Husson avista Séverine durante um concerto de Dvorak, persegue-a até conseguir marcar um encontro a pretexto de lhe desvendar o enigma para o qual só ele tem a resposta que ela sempre quis saber. Ela comparece, mas Husson está mais interessado em arrancar à mulher que não pôde possuir décadas antes uma vingança de pequenos sadismos, silêncios e ambiguidades, como as dela.

Piccoli regressa ao papel Husson, o amigo do marido de Séverine que, durante o dia, encontrava no bordel; Bulle Ogier substitui, como pode, Deneuve e o inevitável Ricardo Trepa, neto do patrão, compõe o destacado ‘supporting role’ do barman a quem Piccoli se confessa, conseguindo talvez – justiça lhe seja feita – a sua melhor prestação de sempre (e a brincar, a brincar, há quase 20 anos que entra nos filmes do avô).

A acção evolui, como é normal em Oliveira, em saltos temporais para, depois, se demorar nos episódios. Poucos planos, câmara fixa a 95% do tempo, o olhar demora-se nos detalhes apurados, na cor e luz fabulosas, na Paris que entra pela janela dentro onde Husson e Séverine medem forças e maldades. A maioria dirá que é uma chatice, alguns acharão genial; por aqui, parece-nos Manoel de Oliveira no seu melhor: negligente com os actores, a linguagem e o tempo, mas extraordinário na construção de imagens perfeitas.

Ninguém é obrigado a entrar. Neste tipo de lugar antigo, aliás, costuma sentir-se melhor apenas entre clientes habituais.

AB

[publicado originalmente na revista Atlântico nº 29]

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