goya não mora aqui (e Forman está de saída)


Comecemos pela história. Este é um filme sobre Goya. Não. Este é um filme sobre a Inquisição. Ou melhor, a Inquisição em Espanha. Não. Este é um filme sobre um determinado período da História de Espanha: a segunda metade do século XVIII, e isso inclui a Inquisição, o Rei Carlos IV, a invasão napoleónica e a restauração do poder. Não, não. Este é um filme sobre o Padre Lorenzo, que começou como fiel servidor da Inquisição; aqui e ali, cruzou-se com Goya, fez uma filha a uma prisioneira acusada de heresia, vendeu-se a Napoleão e acabou enforcado quando a História voltou a mudar de curso. Não. Este é um filme sobre essa prisioneira, filha de boas famílias, que acaba louca sem jamais se cruzar com a filha entretanto crescida idêntica a ela, mas que a vida decidiu tornar prostituta.

Esta é a sinopse de Goya’s Ghosts. A pergunta é: era mesmo preciso rodar o filme para perceber que isto não ia funcionar? Que não tinha ponta por onde se pegasse?

Não é todos os dias que se assiste a um desastre destes. Há alguns casos documentados. Quando o Roberto Baggio, depois de levar a Itália, sozinho, à final do Mundial de 94, atira o penalty decisivo muito acima da trave de Taffarel. Também me lembro de quando Xanana Gusmão, décadas volvidas a lutar pela independência de Timor e a formar uma imagem de herói revolucionário, sobe ao palanque para discursar no dia da independência e as palavras “povo de Timor” lhe saem mais esganiçadas que o refrão do “Vídeo Maria” nos melhores tempos do Rui Reininho. Aqui, a coisa volta a acontecer: Milos Forman, ilustre director de, entre outros, One Flew Over The Cuckoo’s Nest, Amadeus e Man On The Moon, estatela-se ao comprido a meio do salão, depois de tropeçar nos seus próprios passos com a ingenuidade trôpega de um principiante (ou a sobranceria de um veterano a gozar a reforma – hard to tell…).

Goya’s Ghosts é, citando Marcelo Rebelo de Sousa a propósito de Manuel Maria Carrilho, “mau, mau, mau, mau, mau”. Para já, e voltando ao princípio da conversa, parte de uma sinopse que não faz sentido. O filme não é sobre nada, não tem protagonista, não tem conflito fulcral, não tem – seguramente – storyline. Não tem adversário, não tem desafio, não tem pathos: oferece-se um almoço ao espectador que tenha sentido alguma coisa durante o filme, um formigueiro, uma dor, um centésimo de compaixão por qualquer coisa que avistada na tela. O nome – Goya’s Ghosts – não se aplica. Ponto. Está lá como cacofonia. Hão-de ter achado esperta a aliteração. Nada mais. Não há quaisquer fantasmas de Goya a assombrar esta trama e, pior, o próprio Goya é, na melhor das hipóteses, uma personagem secundária à qual, de resto, se fica tão indiferente como a um criado de mesa ou figurante na multidão que assiste aos enforcamentos. Stellan Skarsgard – aliás, tal como a maioria dos actores do filme – parece estar ali em resposta a um telefonema. Forman ligou-lhe quinta a perguntar se estava livre no fim-de-semana, ele estava, vestiu o fatinho, pôs a peruca e despacharam aquilo num instantinho. Natalie Portman continua sem saber que fazer àquela que, há seis ou sete anos, era descrita como sendo uma carreira muito promissora, e Javier Bardem passeia o seu talento, indeciso entre compor um padre perverso, ambicioso e hipócrita e uma imitação de Gabriel Batistuta depois de falhar um golo que costumava fazer rir os amigos lá no café.

Não se percebe o que aconteceu neste filme. Nada funciona. Para ser uma biografia de Goya, faltam-lhe os outros 90% da sua história; para ser uma obra sobre a Inquisição, não se podia perder a seguir os passos do Padre Lorenzo; para ser sobre a História de Espanha, devia ser financiado pelo Governo espanhol e distribuído gratuitamente pelos cidadãos desse país em formato DVD, sem incomodar os consumidores estrangeiros que não o tivessem, expressamente, requerido de antemão. Depois, tudo acontece da forma mais fria, desapaixonada, que há memória. O espectador não se identifica com nada, não se compadece de ninguém, tudo é cínico e feito com uma falta de amor ou – critério mínimo – interesse do director pela sua história e pelas suas personagens que não se entende por que se sentou esta gente, em primeiro lugar, à volta deste guião. Por fim, os pormenores são tratados de maneira tão leviana que roça o insulto: estamos em Espanha, mas ninguém fala espanhol, os reis parecem suecos, Goya parece sueco, os grandes enigmas resolvem-se esbarrando nas respostas, casualmente, a meio da rua; a composição do Goya velho, que acabou completamente surdo, parcialmente cego e esteve, temporariamente, paralítico, é resolvida com uma personagem que anda e vê perfeitamente, apenas podendo ser descrita como razoavelmente mouca – nada que, tal como o próprio Goya diz no filme, não se resolva se o outro falar de modo alto e pausado.

Em tudo isto, mais misterioso que o caso de Forman é o de Jean-Claude Carrière. Que graves problemas de lucidez terão afectado o co-autor do script? Só – recordemos – responsável por Belle de Jour, Le Charme Discret De La Bourgeoisie, Mahabharata, entre dezenas de outros, e, desde logo, um dos mais míticos argumentistas vivos?

Enfim. Desastres colectivos de génios são ainda mais raros que os individuais. Mas, assim de repente, lembro-me do Benfica a levar sete em Vigo. Ou de quando os Beatles escreveram o “All You Need Is Love”. Acontece.

AB

[publicado originalmente na revista Atlântico nº 31]

Comentários

Unknown disse…
Olha aqui amigo, eu sou estudande de comunicação e você é um retardado mental, me desculpe pela honestidade. Você disse que o filme não faz sentido ? acho que se você não consegue entender um filme denotativo, com pouco uso de elementos simbólicos, não poderia estar discutindo esse tipo de coisa. Além disso, para de copiar a opinião dos outros críticos! você utilizou comparações grotescas com coisas que não tem nada haver. Utilizou também, uma série de adjetivos, simplesmente por você não sabe analisar os elementos do filme. Fazer discurso cheio de adjetivos é coisa de ignorante. Além disso, você disse que o espectador não se identifica, isso é mais uma opinião de crítico babaca que não sabe fazer filme , a maioria das pessoas que eu conversei (sejam acadêmicos ou pessoas comuns) gostaram. Como você vem dizer que o espectador não se identifica ? entra no IMDB e ve como a galera gostou e tá pixando os críticos.

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