rosa púrpura do cairo (cinemateca, 22h30)



Não sei se os filmes que se vê dizem alguma coisa sobre quem os vê. Os livros e os discos adquirimos a título definitivo, levamo-los para casa. São pensados e escolhidos com a ponderação do móvel que se vai pôr na sala, a cor de que se pinta a casa, coisas dessa ordem. O cinema não. Ou é servido em auditórios próprios ou distribuído gratuitamente por uma estação televisiva qualquer e avistado, com maior ou menor empenho, a partir do sofá. Parece que apenas o alugamos, que não precisa de ser para sempre. Depois, há a questão do tempo: quando abrimos um livro, assumimos um compromisso para dias, semanas, meses. O filme pede-nos duas horas. Mesmo que seja péssimo, foram só duas horas (evite-se alguma piada fácil acerca dos perigos da trilogia do Senhor Dos Anéis).

Isto faz com que ponderemos menos o cinema que a música ou a literatura que escolhemos. Escapam-nos grandes filmes; vemos muitos filmes maus. Que poderá, em rigor, uma lista completa das películas que viu dizer acerca da sua maneira de ser? Pior: pense só nos filmes que revimos – que haverá deles em nós? Seríamos um bizarro cruzamento do ET com a Música No Coração e Os Dez Mandamentos (atire a primeira pedra quem não viu cada um deles pelo menos quinze vezes, catorze das quais contrafeito, nos almoços de natal das duas últimas décadas). Há quem goste de rever; há quem o dispense por inteiro.

O cinema trabalha, inevitavelmente, na memória; a partir daí, depende do quanto cada um de nós goste de olhar para trás. Pessoalmente, vi duas vezes A Rosa Púrpura Do Cairo. Uma num televisor que já não existe, emitido por uma estação que emite num lugar onde já não vivo; outra num ciclo de cinema organizado por uma associação que desapareceu, numa sala que não sei se ainda funcione. A vida mudou uma série de coisas duradouras; aquelas duas horas de película, desconfio, permanecem iguais.

Há muito a dizer sobre A Rosa Púrpura Do Cairo. Que é – ou, pelo menos, era – o filme preferido do seu autor e que se trata, indiscutível e objectivamente, de um dos seus melhores. É um filme sem género, uma comédia, um drama, qualquer coisa da ordem do fantástico, mas também do clássico romântico. Apresenta Jeff Daniels em pouco mais que início de carreira e Mia Farrow nos primeiros passos duma memorável colaboração com Woody Allen (fiquemos pelo cinema). E conta esta história: Cecília, uma empregada de mesa vulgar com os problemas vulgares de quem anda no mundo, só encontra fuga para a normalidade no interior do cinema. Um dia, quando assiste pela quinta vez a The Purple Rose Of Cairo, capta a atenção de Tom Baxter, o arqueólogo que protagoniza a fita. Baxter abandona o filme e atravessa a tela, passando para o mundo real e fugindo com Cecília, diante da estupefacção geral, deste e do outro lado da realidade.

O final não é necessariamente feliz e disso teve Allen de falar muitas vezes, mas o que importa é toda a discussão gerada de permeio, sintetizada em muitas deixas dum texto genial: conheci um homem maravilhoso, é fictício, mas não se pode ter tudo, diz Cecília. Não se pode aprender a ser real; seria como aprender a ser anão, adverte alguém. Há Henry, a personagem aterrorizada com a hipótese de alguém desligar a projecção e fazê-lo desaparecer, cessar, outra vez. E a perplexidade de Baxter com a fabulosa faculdade da vida extra-celulóide que permite a Cecília fazer amor sem se desvanecer, segundos depois de começar, num pudico fade out.

Mas não era tanto do filme que vínhamos falar. Queríamos era dizer quanto cumpre esse extraordinário destino do cinema: o de nos roubar à realidade por duas horas, ou melhor, oitenta e quatro minutos. Salvar-nos dos problemas vulgares de quem anda todos os dias no mundo. Como Cecília, eu e você.
AB

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