In a Lonely Place (1950) – Nicholas Ray

Não vale a pena fingir que se pode escrever sobre Nicholas Ray sem mencionar Johnny Guitar mas a verdade é que essa obra-prima de Ray só seria criada quatro anos depois de In a lonely place. Quinta longa-metragem do realizador que um dia disse “"If it were all in the script, why make the film?", é interessante encontrar neste filme Humphrey Bogart como um argumentista enredado num crime de que é suspeito, apaixonado pelo seu álibi. Se é verdade que o policial é o esqueleto óbvio para contar qualquer história e que o cinema tem usado esse expediente de formas ilimitadas podemos dizer que em In a lonely place não é tanto o “whodunnit” que importa mas como que se sobrevive ao processo de investigação e descoberto do “whom”. Kafka teria gostado de In a lonely place pela forma como se preocupa com o Processo e não tanto com o Fim do mesmo, que é aliás uma descoberta deslocada e (já) sem sentido: como diz Laurel Gray “Yesterday, this would've meant so much to us. Now it doesn't matter... it doesn't matter at all.” Gloria Grahame refere-se à descoberta do assassino mas Ray, podemos dizê-lo, está-se nas tintas para o assassino. Ele serve no seu filme como desculpa para retratar os suplícios colocados sobre o prototípico personagem Rayano: o homem solitário e idiossincrático, representado aqui por Bogart, que mesmo quando se apaixona não parece não conseguir escapar à solidão. Se não a desejada, a imposta. E o que escolhe Ray para dar forma à personagem de Bogart? Um argumentista na Hollywood do pós-guerra, um homem com “temperamento artístico”, como Dixon Steele (Humphrey Bogart) se descreve a si mesmo no início do filme. Laurel Gray (Gloria Grahame), na altura mulher de Nicholas Ray é o seu álibi. De quê, é lícito perguntarmo-nos? E tenho a ideia de que no fim do filme acharemos que ela é muito mais um álibi para a sua solidão do que para o seu crime. Ou talvez o seu crime seja a solidão ou a solidão a pena do seu crime. As possibilidades são infinitas e Ray gosta desse jogo de possibilidades, de luzes – os magníficos olhos de Bogart e Graheme sempre iluminados sobre a sombra dos seus rostos. Jogo também de actores. Nenhuma personagem é descurada por Ray e In a lonely place conta com uma galeria notável de actores secundários e respectivas criações: Effie (Ruth Warren), a empregada de cigarro sempre na boca e aspirador nas mãos ou o magnífico Charlie Waterman (Robert Warwick), a encarnação do velho actor de Hollywood, sempre bêbado e sempre citando antigas obras literárias.
O que fascina em In a Lonely Place, mais de 50 anos volvidos quer sobre a sua criação, quer sobre a sua estreia em Portugal (1 de Outubro de 1952), é a forma como aí vamos encontrar, a despropósito de um policial, um processo kafkiano dos sentimentos, onde Ray tirou a Kafka a negra e desconcertante moral e colocou o sentimento, por vezes, acre mas envolvente; onde Ray tirou K. e colocou Bogart e Grahame e nem por isso se perdeu alguma coisa, pelo contrário: diria que o resultado mais do que moderno é de uma contemporaneidade continuada, que o preto e branco não conseguem pôr em causa, acentuando. E é igualmente uma suprema homenagem ao esforço do argumentista por pensar e sentir o cinema ainda antes de ele existir – sem perder a sua vida pelo meio - e contribuir assim para o prazer do espectador. Bogart (e pode sentir-se Ray nas sombras) responde a Grahame, quando esta lhe diz que gosta muito da cena de amor do argumento que ele está a escrever: Well that's because they're not always telling each other how much in love they are. A good love scene should be about something else besides love. For instance, this one: me fixing grapefruit. You sitting over there, dopey, half-asleep. Anyone looking at us could tell we're in love

DM

Comentários

Anónimo disse…
Estimado DM: eu não diria melhor.

Gostei da sua opinião.

Digo eu...

Saloio

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