A proximidade da chama - Romain

Pela proximidade da chama não se passa incólume. Quer se caminhe na sua direcção, quer se tenha vindo dela, a chama marca-nos. Dá-nos uma libertação (repare-se: não uma liberdade) assustadora, estúpida. Depois, serena.

Da chama pode dizer-se à maneira do Deus do Islão, que tanto se revela quanto se oculta. O mesmo é dizer que no momento em que a ela chegamos, dela nada comunicamos.

O caminho de Romain, em Le temps qui reste, último filme de François Ozon, são os passos em volta da chama. E, não tanto (embora, sim, inexoravelmente) em direcção a ela. E isso faz d'O tempo que resta um filme esplêndido.

O que assistimos em Romain é à assunção da morte. Começando pela preferência, indiscutida, desta sobre a degradação do corpo que, mal é colocada como hipótese, pelo médico, no início do filme, logo é afastada. A partir daí, com esse problema maior (aqui menor, menor) resolvido resta a Romain o tempo que resta. Belo título. Quando a chama se aproxima ou se afasta de nós o tempo ganha um novo sentido. Se, como no caso de Romain, nos aproximamos dela, creio que Ozon retrata bem, a grande preocupação é arrumar a existência. O proverbial, partir em paz.

Isso não significa partir de bem, significa procurar e sofrer. Há um caminho de paixão neste filme. De muita humanidade com os seus típico passos à frente e atrás, em ritmos e descompassos. Depois da confusão e do desnorte, de se pôr a morte perto e com certeza, parece que a solução é, contra ela, com a tal libertação ora assustadora, ora serena, aceitar a vida toda. Não é a morte que me termina, sou eu.

O alfa e omega de Romain são um e o mesmo, uma criança. O alfa, ele, a criança que foi, que sabe que foi mas que, à maneira de Piaget, permite a suficiente distância. Compreendo isso. Eu, por exemplo, só tenho fotografias minhas com menos de 6 anos de idade. Sei que sou eu. Mas não sou eu. À maneira de Piaget, com a sua teoria da personalidade completa na (pré-)adolescência, embora consigamos reconhecer quem fomos na infância essa é a idade com que mantemos maior alteridade. É por isso compreensível que seja aquela para que gostamos de olhar (e de, porventura, voltar, recomeçar) quando não estamos bem naquele (naquilo) que somos. O omega é também uma criança, não ele, Romain, mas dele, Romain. Diga-se, só agora, que Romain é homossexual. Como se tivesse importância, que não tem. E é isso que tem importância. Ozon a frisar, e bem, que Romain quer procriar - é este mesmo o verbo, ele que é fotógrafo e tudo fotografa - quer continuar. É afinal, Ozon, ele também a aceitar a mais velha forma que o homem encontrou para vencer a chama e passar por ela incólume.

DM

Comentários

Anónimo disse…
filmar a banalidade não deve ser fácil.

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