Novos contos da Montanha

Não me parece que o mais decisivo em Brokeback Mountain seja a orientação sexual das personagens, que essa sequer seja a chave de leitura mais produtiva. Não sendo irrelevante, diria que atrapalha. Quanto muito, como o Domingos sugeriu, funciona como artifício que permite contar de novo e como que de fresco a mais velha história do cinema, o melodrama amoroso. O melodrama amoroso tresanda a banalidade, e em Brokeback Mountain parece que o estamos a ver pela primeira vez. Há, na relação entre os dois, um sabor a instantes iniciais, afinal o mesmo sabor a lavado e limpo, a manhã promissora e ampla, da própria Montanha.

«Ennis», como alguém lembrou, e bem, quer dizer ilha. O filme centra-se na incapacidade para amar de Ennis del Mar – e não apenas para amar Jack Twist. Esta, sim, é uma história que toda a gente entende, com quem ninguém se «choca», e que a toda a gente diz respeito. Não confundamos o Manuel Germano com o género humano. Independentemente de Manuel Germano ser gay ou bissexual, Ennis del Mar tem uma dificuldade com os outros: não consegue amá-los. Não que tenha qualquer problema mecânico, pelo contrário. Mas o amor não o emancipa, a paixão que sente tolhe-o como uma ball and chain. Ennis poderia dizer dos seus sentimentos o mesmo que Ricardo Reis disse do amor, que nem só quem nos odeia e nos inveja nos limita e nos oprime, que quem nos ama não menos nos limita, que o amor oprime porque exige amor, e que deseja ser livre. Na verdade, disse-o, na última cena em que estão juntos: «I wish I knew how to quit you». Na verdade, verdadinha, foi Jack que o disse e Ennis respondeu-lhe «Why don't you?» Nada muda.

Aliás, se algo funciona menos bem é a composição da personagem de Gyllenhaal, e o problema é um problema com o justo peso e a justa medida. Falta-lhe em gravitas o que lhe sobre em heavy handed e farfalhice. A culpa começa no nome. Twist. Não sei se estão a ver. Twist, han. Twist, han-han, Twist. Depois há aquele bigode postiço que a única coisa com que se parece é com outro bigode postiço. Avistando-o pousado no lábio superior de Jack lembramo-nos menos da sua suposta maturidade do que do facto de ele se parecer com alguém que se perdeu da banda nos anos '70, e de que essa banda se chama Village People. Nada contra o kitsch. Sucede por pura infelicidade que o filme está nos antípodas dessa estética, como eu da Lua. À medida que os anos passam, Jack Twist não parece nem mais velho, nem mais sábio, e a culpa é sobretudo do tal bigode farfalhudo de pica da Carris. Parece simplesmente mais fajuto. O contrário com Heath Ledger, que saca um desempenho notável. O autismo de chapéu na cabeça, botas e qualquer coisa na boca.

O filme, de resto não «agride». E é o tal «Midwest» que é gozado pelo filme «Kiss Kiss Bang Bang» que tem levado Brokeback Mountain à glória na bilheteira. Querem «agressivo»? Experimentem a cena final de «Munique» em que Eric Bana reencontra a tusa perdida e dá uma na lindíssima e ruborizada esposa, tudo isto feito em sergios leones detalhados e bem suaditos, e entrecortado pela recordação/imaginação dos momentos finais do massacre dos reféns e dos terroristas no aeroporto. Recordo o singelo frame em que Bana está escanhoado (não assim na «realidade»), limpo, alvar, banhado em luz, enfim redimido. Isto no momento imediatamente anterior à ejaculação. Aposto que no Midwest muitos narizes se torceram nesta cena, e que a cor encarnada alastrou do pescoço a toda a cara, ao contrário das cenas de campismo de Brokeback Mountain, que, por comparação, são uma coisa para meninos. O Midwest pode ter as vistas estreitas mas também tem as costas largas.

RB

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