ainda o capote

É uma grande chatice ter de polemizar com pessoas cuja opinião respeitamos mais que a nossa. Porque as polémicas são o melhor que encontrámos para substituir as cenas de pancadaria no pátio da escola. E eu jamais andaria à pancada com o Domingos no intervalo da tarde. Até porque uso óculos. Mas adiante.
Neste caso em particular, outra dificuldade se cria: é que aquilo que o Domingos cita em defesa do filme é precisamente o mesmo que entendo ser o mais forte de Capote. No entanto - e sei que, no fundo, também concordas com isto -, não é possível achar um filme genial atendendo apenas à parte, fechando os olhos ao todo.
Além do mais, creio que o "greater evil" de que falas é ainda maior - e mais genial - do que dizes.
Capote chora duas vezes no filme. Chora? Não. Não corre uma só lágrima dos olhos de Philip Seymour Hoffman. Alguém acredita que este imenso actor, a meio de uma interpretação fantástica, não foi capaz de parir uma gota de água que fosse da vista, quando até o desconhecido Clifton Collins Jr. (Perry) o faz e, no limite, tratando-se de cinema, não se utilizasse um artifício técnico primário no corte entre os planos? É claro que não. O rosto de Seymour Hoffman, em ambos os momentos, surge enorme na tela, a todo o seu tamanho, contorcendo-se, gemendo, de óculos na mão e dedos enfiados nas pálpebras. Tão espalhafatoso como uma criança amuada. Tão falso como ela. Porque Capote não chora, não se compadece de nada que não seja ele próprio e é, de facto, um "greater evil". O sangue frio é dele. O que ele faz, como aqueles assassinos, é tirar vidas. Mas sem qualquer compadecimento. Alcoólico já era (todo o filme o mostra de copo na mão, antes e depois dos momentos de suposto pranto). E nada nos diz que soubesse já, naqueles dias, que jamais seria capaz de escrever outro livro. Creio, por outro lado, que a paixão era verdadeira. A paixão por Perry, apenas. Daí a total indiferença para com o tonto e feio Richard.
Isto é muito bom. Philip Seymour Hoffman é magnífico. Clifton Collins Jr. óptimo. A sessão de fotografias, os diálogos na cela e o enforcamento são boas cenas. Mas tudo isso, julgo, não faz mais que um bom filme, um '4', o tal 'satisfaz bem'. Porque, de resto, repito, falta o extra. Convenhamos que Truman Capote é uma personagem magnífica, que A Sangue Frio, como livro e circunstância, é material de sonho para qualquer realizador. Era praticamente impossível não fazer daqui o dito bom filme. Falta o golpe. O lampejo. O ângulo, pelo menos. Mais que o olhar bem comportado (não moralista, justiça lhe seja feita) de Bennett Miller, mais que uma passagem do tempo que não se sente, mais que as inscrições finais banais a explicar o destino trágico da personagem, para arrancar uns lamentos à multidão que já veste os casacos e liga os telemóveis.
Quantos directores teriam feito exactamente o mesmo que Miller? Quantos - quantas dezenas - teriam feito melhor?
AB

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