A guerra como excesso

Se o excesso, num certo sentido baudelairiano do termo (mas tantos outros exemplos haveriam), não vos é familiar e íntimo toda a minha construção e paixão em torno dos filmes de guerra é de uma babélica incompreensão.

A guerra é a excepção da humanidade. Ou, pelo menos, uma oportunidade de excepção da humanidade. Quer isto dizer que em tempo de guerra tudo aquilo que, até esse momento, se entendeu incluir no que é humano ganha a possibilidade de ser transgredido, prevertido, negado, ultrapassado e por aí fora ad infinitum. Não falando de todos os outros isto coloca problemas de Moral. Problemas que os mais inteligentes não resolvem com a explicação simples de que a guerra é a ausência de moral. Não. Os mais inteligentes (ou sortudos), se forem realizadores de cinema, fazem esplêndidos filmes sobre os dilemas que a guerra coloca. E, qual seja a perspectiva, parece-me que o denominador comum é o excesso. Ou, de outro modo, a ausência de temperança. Em guerra, não recusemos o lugar-comum, vale tudo. Daí que a guerra e a outra realidade em que tudo vale sejam os maiores inspiradores de filmes de todos os tempos. Além de muitos outros tipos de expressão artística.

Deixado de lado o amor, a que escapa o fenómeno de multidões que a guerra convoca, ficamos com os excessos não contra um ou dois mas contra um outro, quase indefinível. Eis aqui, com terrível acutilância, o problema da humanidade: começar a tratar os outros, não individualmente, mas como abstracções. Como massa indistinta. Ao mesmo tempo, desesperante paradoxo, estabelecem-se laços de humanidade, de intimidade, que de outro modo nunca seriam possíveis. Emoções e sentimentos viscerais como a confiança, o desejo, o ódio, nascem em guerra de uma forma selvagem. Excessiva. Evidentemente, retratar isto em filme não é fácil. Desde logo pela escolha que há a fazer de um ângulo, de um ponto de análise, de um enfoque para contar uma história ou várias. O filme descritivo entorpece e aliena, excepto os particularmente interessados em história militar. O filme existencial corre o risco de não tocar os espectadores, blindados que estão contra esse tipo de discurso. O filme político gera clivagens. O filme de caso pode cair no sentimentalismo barato ou no oportunismo emocional. Enfim, nenhum ângulo é, à partida garantido. Daí que não seja por acaso que grandes realizadores realizaram grandes filmes de guerra. O filosófico Terrence Mallick, o excêntrico Stanley Kubrick, o activista Oliver Stone, o perfeccionista Francis Ford Coppola e o bizarro Ridley Scott, são os que integram o meu top5 mas muitos outros podem ser dados como exemplos. Acho mesmo que o filme de guerra é essencial na carreira de um realizador. Ou de um certo realizador.

O excesso humano é algo que perpassa pela sua história. Seja ela filosófica ou comezinha. É nos excessos que o ser humano se descobre e redescobre e, nesse sentido, a guerra é o apogeu colectivo desse fenónemo. Em que, para o bem e para o mal, o todo não é igual ao somatório das partes.
DM

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