um poema escrito com a vida e uma câmara de filmar


Estreias: POESIA

De: Lee Chang-dong

Com: Yun Jung-hee, Ahn Nae-sang, Lee Da-wit

Shi. É assim que se diz e escreve “poesia” em coreano. Shi, uma palavra ínfima e una, atómica, aparentemente feminina, quase uma nota musical – como a poesia. E “Shi” é precisamente a forma mais poética de olhar a realidade dos cinemas nacionais pós-óscares: começou a ressaca.

As distribuidoras saberão as linhas com que se cosem, mas é difícil perceber a enxurrada de estreias de filmes nomeados nos quinze dias que antecedem a cerimónia da Academia e que nenhuma pessoa normal consegue acompanhar, para depois desaguar no deserto das semanas seguintes. Veja-se o cartaz de hoje: sete novidades e tão pouco que interesse.

Esse pouco que importa é “Shi”, filme que não esteve nos óscares, mas que nos leva a outra questão sobre os ditos: à estranha categoria do melhor filme em língua estrangeira. Esse prémio de consolação sempre soube a gesto paternalista de uma academia que deveria ter a coragem de reduzir os óscares aos filmes de língua inglesa ou abrir verdadeiramente a competição ao cinema mundial.

No entanto, em alguns anos excepcionais, o apertado filtro dedicado ao resto do mundo consegue o milagre de reunir uma amostra realmente boa da produção mundial. No ano passado, por exemplo, encontrávamos “Um Profeta”, “O Laço Branco”, “O Segredos Dos Seus Olhos” e “A Teta Assustada”, um cabaz de raro luxo. Já em 2011, custa perceber por que não cabem “Lola”, “Cela 211”, “Cópia Certificada” ou “Poesia” num leque que albergou, por exemplo, “Biutiful”.

De conversa em conversa em modo cerejas, umas atrás das outras, voltamos a “Shi”. É que vê-se “Poesia” e pensa-se que talvez fosse isto que Iñarritu queria fazer de “Biutiful” e não conseguiu: conjugar múltiplas dimensões numa personagem e conseguir que todas se completem numa só história. É um projecto difícil, certamente ao alcance de poucos e não se pode crucificar ninguém por tentar, mas Lee Chang-dong não se limita a tentar; concretiza.

“Poesia” tem múltiplos caminhos percorridos por uma só mulher: uma senhora sexagenária que se veste de modo elegante, mas de posição social humilde. Para ganhar a vida, ela trabalha para um velho homem a quem dá banho e limpa a casa; para satisfazer outras ambições, frequenta um curso de poesia onde tem a missão de entregar um poema, o primeiro da sua vida, até à última aula. Mas há vida para além do trabalho e dos sonhos: há um corpo que acusa os primeiros sintomas da doença de Alzheimer e há o plano da família onde se vê confrontada com a descoberta de que o neto e os amigos violaram repetidamente uma menina que acaba de se matar.

Como se tranformam tantas histórias numa só história? Com a mestria de um grande contador delas. O Alzheimer vai, lentamente, desvincular esta mulher da realidade, uma realidade a que precisa de fugir, uma realidade medonha a que se vai religar num plano superior de beleza no poema que tem de escrever.

Prémio de melhor argumento no Festival de Cannes, “Poesia” parece vir dum tempo que pouco tem a ver com a passadeira vermelha dos óscares. Nada o impede de lá estar, mas, em rigor, não é difícil ver que são dois mundos que não se compreendem. Um fala do que está à vista; o outro do que não se vê.

Lee Chang-dong perguntou, a propósito deste filme, que significado teria escrever poesia quando as pessoas já não a lêem. E que significaria fazer filmes quando os filmes estão a morrer. A resposta é luxuosa e eloquente: são estas duas horas e vinte de beleza e cicatrizes, num cinema perto de si. Um poema da condição humana escrito com palavras tão improváveis como karaoke, badminton ou viagra.

AB

i, 2011.03.03

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