ele há-de amar uma pedra


Estreias: 127 HORAS

De: Danny Boyle

Com: James Franco, Kate Mara, Amber Tamblyn

Em 2003, Aron Ralston ficou preso no desfiladeiro Blue John, quando uma rocha rolou e lhe prendeu um braço. Habituado a percorrer o canyon desde criança, Aron, um individualista empedernido (no pun intended), tinha ido lá passear como em muitos outros sábados e, como tal, não o comunicou a ninguém. Ninguém sabia que ali estava. Ninguém o esperava para jantar naquela noite ou no dia seguinte. Ninguém o ouviria quando gritasse. Ficaria ali preso, de pé, ao sol e à chuva, durante cinco dias e sete horas.

Esta história, verídica, é notável, mas daria um filme? Um filme com um só actor, imobilizado entre duas paredes imensas de pedra e com uma rocha a prender-lhe um braço? Dependeria do actor, sem dúvida, e ainda mais do cineasta. Alguns teriam conseguido. Teriam feito um filme onde sentíssemos a dor, o desespero, a solidão de forma pungente, depressiva e, quase certo, entediante. Mas só alguém como Danny Boyle poderia transformar este material –um actor, um calhau e meia dúzia de gadgets (uma câmara de filmar, um canivete e pouco mais) – num objecto trepidante de cultura pop, um conto torrencial sem um instante morto, mais empolgante do que a maioria dos blockbusters cheios de personagens e sequências de acção.

Do frenético genérico inicial ao último minuto – o filme tem 94, nem um a mais ou a menos do que precisa – “127 Horas” é um hino de vitória. A vitória da vida, do mundo, do amor em sentido lato, sobre a solidão.

Ao contrário do indivíduo comum, Aron não aproveita o fim-de-semana para estar com a família ou os amigos. O seu plano de repouso consiste em aventurar-se no silêncio e no deserto de um desfiladeiro. Ele foge do mundo e parte entusiasticamente para uma aventura que o resto do mundo acharia deprimente. Pelo caminho, conhece duas raparigas a quem serve de guia antes de se despedirem com um convite para uma festa que ele parece pouco inclinado a aceitar. Depois, vem a pedra, o calhau imenso lançado pelos céus e que o vem acorrentar às entranhas da terra.

Aqui, no coração do filme, joga-se todo o talento de James Franco e Danny Boyle. O actor faz uma lenta descida ao inferno, sem miserabilismos nem over-actings, enchendo o plano de vida em todo o espectro que se estende da esperança ao desespero. O realizador tem a arte de fazer desse longo solilóquio um festival de recordações e sonhos, pensamentos e sensações, entremeados por planos loucos do desfiladeiro que não nos deixam esquecer quão isolado e perdido está Aron.

Algumas imagens não nos sairão da cabeça. O corvo que passa matinalmente sobre a garganta de pedra e que, tipicamente, seria um símbolo de morte, mas que ali é sonho, utopia de liberdade. O raio de sol que, todos os dias, inunda por quinze minutos o intervalo do mundo para onde Aron caiu e que o banha de vida. E, é claro, a cena em que Aron se liberta. (Estimado leitor que não conhece o desfecho da história, é favor mudar de página) É que, depois de concluir que foi a vida que escolheu que o levou até ali; que um plano cósmico o conduziu a ele e ao seu solipsismo àquela condenação extrema à solidão, Aron toma a decisão radical de amputar o braço. Não o faz em nome da vida a que quer voltar, mas daquela que quer começar de novo. Não por aqueles que ama, mas por aqueles que vai amar. Aron corta um braço para aprender a abraçar. Para descobrir os outros. Quando Aron se liberta, liberta-se verdadeiramente, não da pedra, mas dele mesmo.

Aron Ralston transformou 127 horas de maldição numa epifania de vida; Danny Boyle em 94 minutos de grande cinema. Abençoada espécie humana capaz de tais passes de magia.

AB

i, 2011.02.24

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