A vida inteira, agora em apenas quatro horas e meia
Estreias: "Mistérios De Lisboa"
De: Raul Ruiz
Com: Adriano Luz, Ricardo Pereira, Maria João Bastos
Não há como evitá-lo. A primeira coisa que salta à vista em “Mistérios De Lisboa” é a duração: quatro horas e meia. Mais do que se diz que dorme por noite o professor Marcelo. É muito. Demasiado.
Há um velho ditado do cinema que diz que todos os maus filmes são longos e os bons demasiado curtos – de acordo. E “Mistérios De Lisboa” é um bom filme – o problema não é esse. O problema é que se arrisca a ter muito menos público do que merecia. Não faltam casos de filmes que foram encurtados por razões comerciais. É frequente no cinema americano e, diga-se o que se disser, ninguém sabe vender como eles. E um filme feito com tanto investimento público – entre ministérios, institutos e câmaras – tem de ser vendido. Não pode ficar reduzido a umas centenas de espectadores e acabar por custar alguns milhares de euros por bilhete vendido.
De ditado em ditado, também é voz corrente dizer-se que todas as boas histórias se contam numa frase. A arte do criador está, depois, em desdobrá-la até obter um filme ou romance. Logo, o processo reverso também é possível. Tudo pode ser limado com benefício para a obra. “Mistérios De Lisboa” ganharia muito com isso porque, sendo bom, não tem como manter-se no topo durante quatro horas e meia. Quão melhor não teria sido lançar o filme com menos duas horas e editar, depois, um director’s cut em DVD? Enfim, como também sói dizer-se, “eles” é que sabem.
Dito isto, é preciso convencer os descrentes a meter-se na sala. Estamos diante de uma das maiores produções de sempre do cinema português – ainda que o realizador seja chileno – e a verdade é que nunca os actores portugueses pareceram tão belos.
Do ponto de vista estético, é uma obra de arte. Luminoso, cheio de texturas, com uma atenção épica ao pormenor. Ruiz faz tantos e tão belos planos-sequência que parece estar isento das leis da Física; a força da gravidade interrompe-se ali por um qualquer pacto misterioso com o cosmos. Mas não é só mérito do realizador. Pressente-se a devoção de uma equipa inteira. Dá vontade de elencar meia ficha técnica: a fotografia fabulosa de André Szankowski; o argumento de Carlos Saboga; a direcção artística de Isabel Branco; a montagem de Valéria Sarmiento e Carlos Madaleno; o som de Ricardo Leal, Miguel Martins e António Lopes. Depois, os actores: Ricardo Pereira surpreendente; Albano Jerónimo e Maria João Bastos bem como de costume e Adriano Luz a pulsar como coração do filme, carismático e poderoso como um Al Pacino de fabrico nacional.
A maior proeza está em tornar uma trama tipicamente camiliana num policial de apelo contemporâneo. Não faltam órfãos, amores proibidos, homens e mulheres cheios de segredos, clausuras em conventos, as palavras preciosas, mas pesadas de Camilo, e tudo isto é manobrado de forma ágil, como se o romantismo do século XIX estivesse a acontecer aqui e agora. A primeira parte passa a grande velocidade, cheia de suspense, tensão, mistérios. Mas, na segunda, abandonando os protagonistas para seguir passados e recordações, “Mistérios De Lisboa” vai, inevitavelmente, deixando fugir a tensão. Na plateia, a atenção ocupa-se agora em pensar se cada cena daquelas será mesmo necessária ou se não poderia ter ficado de fora.
O único problema de “Mistérios De Lisboa” é o tempo. E é precisamente o tempo que ditará o sucesso ou insucesso do risco que se correu. Deveria ser mais breve? Sem dúvida. Mas será uma pena se tanto trabalho e talento se perderem por uma questão de horas. Durmamos, por uma vez, o mesmo que o professor Marcelo, e apliquemos o resto da noite numa sessão de cinema.
AB
i, 2010.10.21
Comentários
Quero ir ver esse filme mas ainda não tive coragem nem tempo para o fazer...4h30 é demasiado!