surpresas não, por favor
UMA FAMÍLIA MODERNA
De: Ferzan Ozpetek
Com: Riccardo Scamarcio, Nicole Grimaudo, Alessandro Preziosi
Claro. Por regra, queremos ser surpreendidos quando vamos ao cinema. Mas outras vezes, de tempos a tempos, só queremos que nos dêem exactamente aquilo que esperamos receber. Sem surpresas. É um prazer conservador que não implica um compromisso político com o conservadorismo porque está antes da política. Cabe na categoria da fidelidade ao jornal que se compra todas as manhãs. Do restaurante a que se vai pedir, com o conforto do conhecimento de causa, “o costume”. É a doçura do valor seguro. Da aposta sem risco.
É por aqui que se desfruta de “Uma Família Moderna”. De certeza que alguns o chamarão de cliché de um certo cinema italiano – e terão razão. Só que, por vezes, lá está: tudo o que um tipo quer é que lhe sirvam um bom cliché. Aquele bife, aquele vinho, aquele sabor.
“Uma Família Moderna” é, portanto, uma tasca típica da fita italiana. Temos uma família poderosa e de valores tradicionalistas, os Cantone. O pai gere a empresa que tem passado de geração em geração, empresa essa que é, a propósito, uma fábrica de massas. Mais típico, mais cliché, impossível. Passo seguinte da receita: à beira da reforma, o pai procura um sucessor e o herdeiro natural é, obviamente, o filho varão. Mas esse filho tem outros planos. Temos ainda uma avó, uma matriarca sem nome identificada simplesmente como “la nonna” e que é a reserva moral da família, mas que, no íntimo, só quer que os netos façam aquilo em que acreditam e trilhem o seu próprio caminho. E temos cenas confusas à mesa, gente que fala alto e gesticula ao mesmo tempo, conversas cruzadas, comédia de enganos, criadas para todo o serviço e, finalmente, a quantidade justa de segredos a que todo o espectador tem direito. O filho varão é homossexual, o pai deserda-o e, entre um ataque cardíaco e o pavor de um próximo, entrega a empresa nas mãos do filho mais novo. Mas também esse tem ideias muito próprias para a vida que tenciona levar. Em fundo, há Lecce. A bela cidade de Lecce, aconchegante e clássica e por cujas ruas a família não quer ver arrastado o nome Cantone.
Curiosamente, quem serve este prato típico da cinematografia italiana é um turco. Ferzan Ozpetek viajou de Istambul para Roma em 76 para estudar cinema. Depois, ficou por lá. Foi fazendo filmes como o sólido “A Janela Em Frente”, que vimos em 2003 (e que acabaria por ser, de resto, o último trabalho de Massimo Girotti, falecido pouco tempo mais tarde nesse ano). Agora, Ozpetek parece ter a fórmula mais apurada que nunca. Ainda não é genial, ainda não merece todas as estrelas do guia Michelin num país tão rico de cozinheiros como de bons cineastas, mas lá chegará. Não parece ser um génio, mas os alunos aplicados, contando que vivam o suficiente, chegam sempre a mestres.
O resultado final de “Uma Família Moderna” é um raro caso de equilíbrio entre drama intenso e humor certeiro – aquele subgénero que conhecemos por comédia dramática, para horror da lógica semântica. O toque mais reconhecível de Ozpetek está na habilidade de artista plástico com que pinta a tela: a luz perfeita e quente, as superfícies aveludadas, os movimentos de câmara a deslizar pelos espaços com uma elegância de bailarino clássico. E tudo isto faz de “Uma Família Moderna” uma coisa séria que faz rir e que, ainda por cima, é bela.
Os experimentalistas, os rebeldes, os revolucionários, vão, provavelmente, odiar, mas não falta cinema para eles. Ozpetek escreve e dirige para uma plateia de conservadores. Gente que acredita que a vida sabe melhor com hábitos e rotinas. Nos dias que correm, isso é que é revolucionário.
AB
i, 2010.10.07
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