nem Ben que sempre dure nem mal que nunca acabe


Estreias: A CIDADE

De: Ben Affleck

Com: Ben Affleck, Jeremy Renner, Rebecca Hall

Estamos em Charlestown, Boston. Estatisticamente, dizem-nos, nenhuma outra localidade americana produz tantos ladrões. Depois, vem a acção. Um gangue de quatro elementos disfarçados de Skeletor, esse vilão esquecido da saga “Masters Of The Universe”, invade um banco, prende os funcionários, saqueia o cofre e leva a gerente como refém para escoltar a fuga. Anda às voltas pela cidade com a jovem vendada, até que a deixa delicadamente voltada para o oceano, sem lhe tocar num cabelo.

O bando de Doug MacRay (Ben Affleck) e James Coughlin (Jeremy Renner) tem uma longa folha de serviços. James, ou Jem, já passou mesmo nove anos na prisão para salvar a pele a Doug, o melhor amigo e cunhado eventual. Quando voltou cá para fora, voltou para Charlestown, para aquilo que os rapazes de Charlestown fazem: roubar. É o destino. Passa de pais para filhos. São lealdades de gerações e ninguém as questiona. Só que, agora, uma pequena dúvida pode deitar tudo a perder. E se Claire, assim se chama a gerente, viu alguma coisa? Jem não está disposto a voltar para a cadeia; Doug, que nunca matou ninguém na vida, recusa medidas drásticas. Então, segue os passos de Claire, até que se apaixona.

Lamentamos informar todos os que, como nós, sempre acharam Affleck um canastrão que o homem acaba de fazer um dos melhores filmes do ano. Sim, aquele tipo que foi fazendo carreira com os créditos ganhos por ser amigo de Matt Damon pode, afinal, se não se perder, tornar-se muito mais importante para o cinema que Damon. Este cavalheiro que há treze anos se arrasta de flop em flop é afinal: a) um bom actor; b) um excelente argumentista; c) um realizador a ter em conta. Na verdade, é tão bom a dirigir actores que até consegue que ele próprio vá bem. Mesmo bem.

É que “A Cidade” é mais que um filme de acção ou golpada. Dobrado o primeiro acto, torna-se, sobretudo, um drama de actores. Grandes actores como Rebecca Hall (“Vicky Cristina Barcelona”), Jeremy Renner (“Estado De Guerra”), Jon Hamm (aliás, o Don Draper de “Mad Man”), Chris Cooper ou Pete Postlethwaite, ao serviço de personagens cheias de passados. Jem com os seus anos de cadeia e a lealdade ao melhor amigo e ao bairro onde nasceu; Doug e o pai que está preso, o florista mafioso para quem trabalha e o trauma com a mãe que lhe desapareceu na infância. Personagens e cicatrizes movem-se depois numa teia bem urdida: a tensão entre ladrões e FBI. Entre Jem e o melhor amigo que decidiu apaixonar-se pela única pessoa que os pode denunciar. Entre Doug e a mulher que ama e que pode, a qualquer momento, descobrir quem ele realmente é.

O texto torrencial, cheio de vernáculo do bairro, as perseguições pelo labirinto de Charlestown, os pequenos requintes do argumento que se dá ao luxo de nos contar quando mede e pesa uma nota de dólar, tudo isso nos faz deixar levar, sem oferecer resistência. Mas o triunfo de “A Cidade” está naquilo que mais profundamente a move: a tábua de valores. Os códigos tácitos de honra entre gente que cresceu ao lado uma da outra. A possibilidade de escapar ao destino. A miragem da redenção, ainda que longínqua. Um apurado sentido de justiça entre quem não tem mais nada a que se agarrar.

Há truques que já morreram de velhos como o “vamos dar mais este golpe e, depois, acabou” e falhas como o facto de os restantes membros do gangue de Doug e Jem pura e simplesmente não existirem como personagens. Mas o que vem à memória enquanto se vê “A Cidade” são algumas das melhores referências possíveis: Michael Mann, Tarantino, Clint Eastwood.

Podem espalhar a notícia: Ben Affleck fez um grande filme.

AB

i, 2010.10.14

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