para além do crime e do castigo


UM PROFETA

De: Jacques Audiard

Com: Tahar Rahim, Niels Arestrup, Adel Bencherif

As prisões são um cenário antigo do Cinema. Lugares de conflito por excelência, fornecem matéria fílmica de primeira apanha para personagens, dramas e pretensões morais. De uma forma ou de outra, dão origem a filmes que questionam as diferenças entre a reclusão e o “cá fora”, aproximando-nos de quem está “lá dentro” e que é, afinal, igual a nós, com a pequena diferença de ter cometido um crime ou, pelo menos, sido condenado por ele. Colocam-se questões de consciência, dos limites da justiça ou da injustiça, e emerge uma ânsia de liberdade que nos deixa a agradecer a vida aborrecidamente livre que temos. Depois, há as cenas-choque, os murros no estômago das imagens de miséria, abuso sexual e tráficos de toda a espécie.

Mas algo é diferente n’ “Um Profeta”. Começamos o filme a entrar na prisão com Malik e saímos, no fim, com ele. Cumprimos pena a seu lado. Fomos a sua única e discreta companhia. Parceiros de cárcere e no banco do pátio. Não o vimos de “cá de fora”, não fomos a plateia com a visão privilegiada do todo; avançamos de olhar no chão, sofremos o que há a sofrer, até erguer os olhos para a saída. Em tudo isto, não há uma narração a falar-nos de medos e angústia, arrependimentos e esperança, solidão e planos de fuga. Jacques Audiard não tenta fazer um filme moral sobre as duras condições de vida na prisão, a possibilidade ou impossibilidade da justiça e da reabilitação. Tudo isso está lá como está a humidade das paredes e o rumor invisível dos outros condenados. Estão a sexualidade precária, as drogas, o guarda que se faz à pequena corrupção. Mas é tudo parte do cenário e não do tema. O tema é Malik, o nosso homem que entra aos 19 anos, sem mais história que algumas cicatrizes espalhadas pelo corpo, que não sabe ler nem escrever e vem para cumprir seis anos.

Durante as excelentes duas horas e meia seguintes, cumprimos a nossa pena. Não sabemos por que crime, mas isso não é importante. Importante é aprender a sobreviver e aprender que a única forma de sobreviver é dominar. Num universo recortado pelos conflitos étnicos que tanto têm interessado ao cinema francês contemporâneo, temos duas facções: os corsos, o velho crime organizado, e os árabes, a nova ordem. Malik é um órfão a meio deles. É o árabe dos corsos e o corso dos árabes. O escravo que fará o seu caminho até se tornar senhor.

Na prisão de Audiard – construída de propósito – não há bons e maus tipos. Não há amigos nem interesse em fazê-los. Há homens que se confundem violentamente com animais. A presença dos guardas quase não é notada – a justiça, a lei, a sociedade, o Estado, o que se lhe quiser chamar, não está ali e não é, portanto, o inimigo. Os prisioneiros vivem ali. Aquela é a terra deles. Eles são cães, excepto Malik, que é um rato. E a prisão é o seu canil, a colmeia, o formigueiro. O que acontece entre eles é selecção natural, uns são escravos e outros senhores ou, de modo perverso, filhos e pais. Uma cidade entre quatro paredes onde possuir uma lata de café é símbolo de status.

Grandes interpretações do quase estreante Tahar Rahim como Malik (Melhor Actor para a Academia de Cinema Europeu) e Niels Arestrup enquanto César Luciani, o “Don” do pátio da prisão, senhor dos Corsos.

Ao quinto filme, Jacques Audiard torna-se, em definitivo, um dos nomes essenciais do cinema contemporâneo. Grande Prémio do Júri do Festival de Cannes, vencedor do London Film Festival e melhor estrangeiro do ano para a National Board of Review, “Um Profeta” fica entre nós à espera de vencer, pelo menos, o preconceito anti-cinema europeu.

AB

i, 2009.12.31

Comentários

Unknown disse…
É um filme que quero muito ver.

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