a imaculada concepção do mal


O LAÇO BRANCO

De: Michael Haneke

Com: Christian Friedel, Ulrich Tukur, Burghart Klaubner

Haneke é um daqueles realizadores-boxer – cada filme é um murro no estômago. Muitos tê-lo-ão conhecido em 1997, com o tremendo “Brincadeiras Perigosas”, o odioso caso de um par de jovens que sequestrava uma família em sua própria casa. A violência brutal e verdadeiramente gratuita – porque exercida sem qualquer motivo – culminava num ponto inesquecível: uma das pessoas da família conseguia matar um dos sequestradores e oferecer ao público o primeiro momento de algum alivio. Mas, de repente, o outro agarrava o telecomando, puxava o filme até antes da morte do companheiro e salvava-o, fazendo tudo regressar à primeira forma e deixando o espectador inapelavelmente desarmado e impotente. Revoltante e genial. Um momento histórico, mas criminoso.

Desde então, o que se pode dizer é que, apesar de tudo, Haneke tem vindo a amolecer, a humanizar-se, a ficar, talvez, mais piedoso. Quem não viu “Brincadeiras Perigosas”, terá achado “A Pianista” pesado e “Nada A Esconder” opressivo, mas os outros sabem que, no fundo, comparados com aquele vil telecomando, eram café pequeno. “O Laço Branco” é o corolário da carreira dum dos mais importantes cineastas do nosso tempo: na forma, é talvez o seu filme mais clássico – com um narrador convencional que nos guia pela história, um caso de amor doce, um preto e branco belo e conservador, uma estrutura narrativa plana. Mas, por dentro, estão lá as obsessões de sempre: a violência, a perversão, a crueldade, as relações de poder e submissão.

O professor conta-nos a história muitos anos depois de ter tido lugar. Uma série de acontecimentos estranhos sucederam em Eichwald, uma pequena comunidade rural no Norte da Alemanha. E tudo começou, diz ele, com o acidente do médico, quando o cavalo que montava foi derrubado por um fio estendido entre duas árvores. Depois, veio a morte de uma mulher. A mulher dum trabalhador da quinta do Barão que morreu quando o chão de um velho armazém cedeu. A seguir, vieram outras coisas. Coisas graves e misteriosas que espalharam o medo e a suspeita pela aldeia.

Aqui, nenhum adulto tem nome. Há o Médico, o Barão, a Baronesa, o Professor, o Pastor, a Ama, o que contribui para o tom de arquétipo do conto de Haneke. E há as crianças, muitas crianças, essas sim chamadas pelo nome próprio, e um ambiente geral de opressão, clausura e rigidez que pode estilhaçar a qualquer momento. A aldeia de Eichwald vive numa obsessão pela pureza e é daí que vem o nome do filme: o laço branco era amarrado ao braço das crianças para lhes recordar que deviam ser puras e inocentes. Mas é essa obrigatoriedade da virtude que se vai converter na germinação do mal. Crianças agredidas, abusos sexuais, suspeitas de incesto, deficiências físicas, humilhações. Haneke opta, como fizera já em “Nada A Esconder” por não oferecer uma resposta clara ao esquema simples do “whodunit”: terão sido as crianças as autoras dos crimes? Terá sido o Médico, ou o Médico com a ajuda da Ama, ou o Pastor ou nenhum deles? De uma forma ou de outra, foram todos, foi a aldeia inteira e a sua tabela distorcida de valores.

O filme termina com o anúncio do assassinato do Arquiduque Francisco Fernando. A Primeira Grande Guerra vai começar e aí saímos do espaço fechado de Eichwald para a História. “O Laço Branco” não é apenas uma ficção, mas uma tese sobre a sociedade donde nasceriam alguns dos episódios mais vergonhosos do século XX – não é por acaso que, no original, o título completo seria “O Laço Branco – Um Conto Infantil Alemão”.

Foi Palma de Ouro em Cannes e é a primeira grande estreia de 2010.

AB

i, 2010.01.14

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