Ver cinema com o corpo: Elephant
Para o Alexandre Borges,
possivelmente o início de uma bela polémica.
A minha resposta à pergunta «Então, gostaste?» foi: o meu corpo não gostou, mas o filme é intelectualmente soberbo. Essa sensação de ontem foi, claro, reforçada hoje ao ser reconstruída quando comecei a escrever isto. O mérito do filme passa justamente por nos fazer vê-lo antes de tudo com o corpo, a pensar nele com o corpo, e só depois com a cabeça. E vê-lo com o corpo é, num primeiro momento, rejeitá-lo, muito como «Os Mutantes» de Teresa Vilaverde. O corpo reage contra o filme porque é posto de propósito em desconforto: longos planos, lentos e sonolentos, banda sonora minimal, muitas vezes uma simples linha de piano, tons soturnos reflectidos de um céu plúmbeo paradoxalmente em rápido movimento e um deambular constante da câmara perseguindo a pé os miúdos pelos corredores do liceu. O entrelaçar do script com a montagem é engenhoso. O filme reconstitui quase em tempo real a hora e meia que antecede o massacre de Columbine a partir das trajectórias de alguns personagens que se vão cruzando nos corredores. Não existe propriamente uma história a ser contada, a narrativa avança quando as personagens se cruzam e a câmara passa a seguir outra. Às vezes, volta-se atrás ligeiramente no fio cronológico para retomar o percurso da personagem que se cruzou com a personagem que seguíamos até aí. A relativa ausência de diálogo que enche tudo isto força ainda mais o espectador a ver o filme com os sentidos e o estômago.
A ideia de Gus Van Sant é a da continuidade entre a pacata vida do liceu, um dia como todos antes desse, os flirts adolescentes, a anorexia das meninas cool, a cantina, o clube de fotografia, o pai-professor bêbado, os putos bullys e os bullied – e o massacre. Os dois tempos que procurei criar na frase anterior, no filme, não existem. O massacre é retratado da mesmíssima forma daquilo que o antecede através de longos planos e deambulações pelo liceu. E nada mais perturbante que um massacre feito de calma e violência absolutas. A violência não se faz adivinhar por um crescendo de algo (não há por isso build-up, algo que o espectador esperaria, posto saiba já como «acaba» a história), ela também não irrompe com trombetas, ela vem de dentro do que estava antes com serena naturalidade. A continuidade entre o antes e o depois sugere duas ideias e uma pergunta: que o massacre não é essencialmente distinto daquilo que o antecede e que o massacre poderia ter sucedido no início do filme que nada se teria alterado, ou seja, sugere a circularidade do tempo que vem baralhar, claro, a seta da causalidade (a causa antecede o efeito). Mas, se Van Sant está a dizer-nos que a violência é feita da mesma matéria do que estava antes, que não há qualquer ruptura, isso é aceitável?
Do ponto de vista das causas sugeridas para a violência, é claro que o massacre é uma vingança de dois miúdos bullied contra os bullys e os jocks (desportistas), mas este leque vai alargando porque as balas não fazem sociologia e entram em qualquer um. Quando um dos miúdos mata o reitor, símbolo de autoridade, pensamos «Ah, estou a perceber...» mas depois este miúdo é morto pelo outro simplesmente porque sim. Depois, tudo aquilo não surge de broken homes e pais problemáticos (aliás, o filho do professor bêbado é avisado do massacre, salva-se e salva outros avisando-os da sua iminência), não porque não nos apercebamos da sua existência, mas porque ela nos é propositadamente dada a ver de forma demasiado remota para ser uma causa eficiente. É óbvio que os rapazes disparam armas automáticas porque a elas tiveram acesso através da net e existe por isso uma crítica política ao fácil acesso às armas (tema central em «Bowling for Columbine» de Michael Moore). Mas fica a sensação de que é isso, que é isso tudo, mas que não é só isso. O que sobra, então, para causa? Sobra a tal continuidade. Fica a pairar a sociedade americana: aquilo que antecede e sucede ao massacre, aquilo que embebe todas as personagens, edifícios e objectos, aquilo em relação ao qual não há exterior no filme. Aquilo que tudo causa, sem de nada ser a causa particular.
RB
[republicado daqui]
possivelmente o início de uma bela polémica.
A minha resposta à pergunta «Então, gostaste?» foi: o meu corpo não gostou, mas o filme é intelectualmente soberbo. Essa sensação de ontem foi, claro, reforçada hoje ao ser reconstruída quando comecei a escrever isto. O mérito do filme passa justamente por nos fazer vê-lo antes de tudo com o corpo, a pensar nele com o corpo, e só depois com a cabeça. E vê-lo com o corpo é, num primeiro momento, rejeitá-lo, muito como «Os Mutantes» de Teresa Vilaverde. O corpo reage contra o filme porque é posto de propósito em desconforto: longos planos, lentos e sonolentos, banda sonora minimal, muitas vezes uma simples linha de piano, tons soturnos reflectidos de um céu plúmbeo paradoxalmente em rápido movimento e um deambular constante da câmara perseguindo a pé os miúdos pelos corredores do liceu. O entrelaçar do script com a montagem é engenhoso. O filme reconstitui quase em tempo real a hora e meia que antecede o massacre de Columbine a partir das trajectórias de alguns personagens que se vão cruzando nos corredores. Não existe propriamente uma história a ser contada, a narrativa avança quando as personagens se cruzam e a câmara passa a seguir outra. Às vezes, volta-se atrás ligeiramente no fio cronológico para retomar o percurso da personagem que se cruzou com a personagem que seguíamos até aí. A relativa ausência de diálogo que enche tudo isto força ainda mais o espectador a ver o filme com os sentidos e o estômago.
A ideia de Gus Van Sant é a da continuidade entre a pacata vida do liceu, um dia como todos antes desse, os flirts adolescentes, a anorexia das meninas cool, a cantina, o clube de fotografia, o pai-professor bêbado, os putos bullys e os bullied – e o massacre. Os dois tempos que procurei criar na frase anterior, no filme, não existem. O massacre é retratado da mesmíssima forma daquilo que o antecede através de longos planos e deambulações pelo liceu. E nada mais perturbante que um massacre feito de calma e violência absolutas. A violência não se faz adivinhar por um crescendo de algo (não há por isso build-up, algo que o espectador esperaria, posto saiba já como «acaba» a história), ela também não irrompe com trombetas, ela vem de dentro do que estava antes com serena naturalidade. A continuidade entre o antes e o depois sugere duas ideias e uma pergunta: que o massacre não é essencialmente distinto daquilo que o antecede e que o massacre poderia ter sucedido no início do filme que nada se teria alterado, ou seja, sugere a circularidade do tempo que vem baralhar, claro, a seta da causalidade (a causa antecede o efeito). Mas, se Van Sant está a dizer-nos que a violência é feita da mesma matéria do que estava antes, que não há qualquer ruptura, isso é aceitável?
Do ponto de vista das causas sugeridas para a violência, é claro que o massacre é uma vingança de dois miúdos bullied contra os bullys e os jocks (desportistas), mas este leque vai alargando porque as balas não fazem sociologia e entram em qualquer um. Quando um dos miúdos mata o reitor, símbolo de autoridade, pensamos «Ah, estou a perceber...» mas depois este miúdo é morto pelo outro simplesmente porque sim. Depois, tudo aquilo não surge de broken homes e pais problemáticos (aliás, o filho do professor bêbado é avisado do massacre, salva-se e salva outros avisando-os da sua iminência), não porque não nos apercebamos da sua existência, mas porque ela nos é propositadamente dada a ver de forma demasiado remota para ser uma causa eficiente. É óbvio que os rapazes disparam armas automáticas porque a elas tiveram acesso através da net e existe por isso uma crítica política ao fácil acesso às armas (tema central em «Bowling for Columbine» de Michael Moore). Mas fica a sensação de que é isso, que é isso tudo, mas que não é só isso. O que sobra, então, para causa? Sobra a tal continuidade. Fica a pairar a sociedade americana: aquilo que antecede e sucede ao massacre, aquilo que embebe todas as personagens, edifícios e objectos, aquilo em relação ao qual não há exterior no filme. Aquilo que tudo causa, sem de nada ser a causa particular.
RB
[republicado daqui]
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