Caché: tudo a esconder
Fixemo-nos nisto: desde o início, quase em cada cena de «Caché» alguém fecha uma porta. Assoma, entra, e fecha a porta atrás de si. Arriscaria dizer que o filme está todo aqui. A razão pela qual o filme está todo aqui é a mesma pela qual o título português («Nada a esconder») é nada menos que desastroso. Explico-me.
Sob o pretexto policial de quem mandou as cassetes e porquê, o filme coloca sob o microscópio a comunicação entre pessoas (marido/mulher, filho/mãe, filho/pais) e a memória. As personagens atravessam o filme como os barcos atravessam o canal do Panamá, por meio de eclusas, compartimentos estanques que as elevam e fazem progredir mas somente ao preço do corte com o que está antes, com o passado. Daí a insistência no fechar de portas. Daí o título, «Caché».
As relações entre as personagens, tal como a relação entre divisões de uma mesma casa separadas por portas fechadas, caracterizam-se pela contiguidade e pela amputação. Elas estão, em medida inelutável, escondidas umas das outras, ainda que, ou sobretudo se, lado a lado. Quando Georges (Daniel Auteuil) fala com a mãe (Anie Girardot), ele insiste que ela está doente, ela diz que não; ela insiste que ele tem alguma coisa, ele diz que não; ele pergunta-lhe por Majid, o rapaz que os pais adoptaram em criança, se ela se lembra dele, se pensa nele, ela diz que não se lembra; ele diz como é possível, ela diz porque é que queres saber, ele diz «boa noite, mãe», sai e fecha a porta.
Tal como em «Funny Games» ou a «Pianista», existe uma utilização deliberada da experiência física de estar ali na sala a ver o filme, filmado desta maneira. A maneira como se narra a história, em larga medida escondendo-a do espectador, espelha, claro, o tema do filme. Usualmente, esperamos de um filme que se desenvolva, que se abra no sentido de uma explicação. Esperamos que o passar do tempo traga consigo mais ordem. No fundo, que o cinema contrarie a segunda lei da termodinâmica. Ora, em «Caché», nada disto sucede, em câmara lenta. Por vezes, excruciantemente lenta. A possibilidade equívoca de que o que estamos a ver possa ser uma gravação, é uma possibilidade sempre presente, sempre ameaçadora. E é com alívio que certos grandes planos de câmara fixa são entrecortados pelo ffwd ou backward típicos de quando alguém, Georges ou Anne (Juliette Binoche), está a mexer no vídeo.
Mas vi em «Caché» qualquer coisa de «Elephant». Considere-se a lentidão imperturbável da cena em que Majid (Maurice Bénichou) corta a própria garganta. A cena, filmada com câmara fixa do ângulo da boca de cena (o nosso, espectadores na sala), segue sempre, caminha sempre, da mesma maneira que a câmara de Gus van Sant percorre os corredores de Columbine, antes e durante o massacre. O antes, o durante e o depois sucedem-se sem uma aceleração de ritmo que anuncie o climax. Esta modorra inerte, lenta por igual, é dilacerante. Apenas a agitação (silenciosa) de Georges dá o suposto tom da cena: frenêsi, pânico. Contudo, a cena não é propositadamente filmada como ele a sente. A fixidez e o ângulo da câmara, que rimam com os da cassete gravada naquela mesma cozinha, sugerem exterioridade e um registo quase documental, frio, detached. Se a cena tivesse sido filmada na Lua, pouco seria diferente. Na Lua não há gravidade e os objectos uma vez postos em movimento seguem em frente, sem parar. Na Lua não há frenêsi, nem atrito, só movimento perpétuo e silêncio. Daí nasce, como se vê em «Elephant» e «2001, Odisseia no Espaço», o maior monstro, o da ansiedade.
A partir do diálogo do filho de Majid (Walid Afkir) com Georges na casa de banho, as cenas prosseguem em rimas sucessivas. Georges chega a casa, fecha a porta, toma dois comprimidos para dormir, telefona a Anne a dizer que vai dormir, para que nem ela, nem o filho o acordem, sobe ao quarto, fecha a porta, corre as cortinas, a câmara já está fixa, ângulo da boca de cena, ele deita-se. Dorme. Sonha? Cut to. Casa de infância de Georges, câmara fixa, de longe, da boca de cena, chega um carro que estaciona em frente da casa, onde Georges vivia com a mãe, alguém traz uma criança à porta, vão levá-la dali, a criança foge, é apanhado e metido à força no carro, o carro arranca. Era Majid, o argelino, no momento em que lhe amputaram o futuro. Vingança? Cut to. Câmara fixa, da boca de cena, escadarias da escola de Pierrot (o filho de Georges e Anne), saem todos os garotos da escola, nós procuramos ver o filho de Majid, ou Pierrot, ou os dois (e de tanto os querer ver chegamos ilusoriamente a vê-los), mas eu acho que não. Pierrot nunca desceu a escadaria da escola. Não sabemos porquê. Contudo, sabemos o que o filho de Majid tinha dito a Georges na cena da casa de banho: «agora já sei como é viver tendo a vida de alguém na consciência». Retribuição?
RB
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