A history of violence (X) - A cena das escadas

A cena das escadas é apenas um pormenor de génio psicológico de Cronenberg. Digo apenas porque o filme está repleto deles. Mas, dito isto, a cena das escadas não destoa pelo seu génio mas pela sua estranheza na toada de A history of violence. Está-se mesmo a ver que me estou a fazer ao mais gasto dos brocardos: a cena das escadas primeiro estranha-se e depois entranha-se. E há uma explicação para a estranheza e há uma explicação para o entranhamento.
A cena é estranha porque o émulo do amor, Edie, mostra (o) ser(,) um anjo mau, mostra-se ao contrário, evil twin de si mesma. É verdade que a tinhamos visto naughty na cena de sexo anterior (aliás, inocente cena de sexo) mas ser naughty é, o mais das vezes, perdoem-me a generalização, o apogeu do que se julga ser kinky, marca de uma alma bondosa e cândida. E Edie podia ser só isso: uma extremosa esposa, querendo, como tantas e tantas vezes, dominar, sair de si, play twisted. Na cena do sexo pós-adolescente não o consegue. Partilhamos uma fantasia mas nada mais. Isso não se pode confundir - e não se confunde! - com a Edie que temos nas escadas. Ai não se confunde não...
O que temos na cena das escadas - e daí a estranheza - é uma inversão de papéis, exactamente no momento mais bizarro para essa inversão. Começamos a suspeitar do passado violento de Tom, há já indícios de Joey e, num momento, a violenta é Edie. Olhem bem para ela nessa cena - Joey/Tom reage, sem dúvida, mas é ela que está transfigurada - Edie assume-se como a violenta, como aquela que quer violentar. E veja-se como termina a cena. In control. Ouch.
Esta cena, além de ter permitido a Cronenberg realizar mais uma fantástica cena de sexo (enfim, não puxem por mim, este é um blog de família) sintetiza uma dimensão de A history of violence. Todos, mas mesmo todos, incluindo o anjo que se opõe à violência, que é Edie, são por ela contaminados. You see, violence comes to us all, parafraseando Sophie Marceau em Braveheart. Nessa cena isso fica claro e cristalino, mesmo se pelo meio de esgares, ofegares, trejeitos e avanços, nas translúcidas escadas. Aí, por uns breve minutos (ainda menos que a ópera final), Edie é a violenta, Tom a sua vítima, todos os esterótipos se invertem. Dá vontade de dizer que foi ela que o comeu. Mas não vou dizer.
Tudo isto se entranha, tem de entranhar. Que significa esta irrupção de Edie? Este interlúdio na presença oculta de Joey, no desvendar de Tom? Se voltássemos ao texto de Eros daria vontade de dizer que o Amor surgiu aqui para equilibrar as coisas, desequilibrando-as numas escadas. O sexo tem ali, também, um tempero dionisíaco, tanto de possessão/perdição (furiosa) no Outro, como de irracional, libertador (o Diónisos Lúsios). Possui-se para garantir o corpo, como se este garantisse uma identidade, uma memória, uma certeza, que começa a escapar. Como se, também, possuir pudesse dominar e libertar: possuo-te, porque te deixo possuir-me, porque não me possuis, porque eu mando, porque... (porque estou farta de ser amor e compreensão, raivosa por me sentir perdida e enganada e porque o corpo é tangível, quando tudo o resto não é).
A seguir Tom e Edie só voltam a confrontar-se, de uma maneira que se lhe compare, quando este chega a casa e se senta à mesa. Mas aí Cronenberg filma fim. E este texto termina também.
DM

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