A history of violence (VIII) - Do amor

para o Zé Manel

A history of violence
é igualmente a history of love. A ligação é perigosa, bem sei. Daqui a pouco estou a defender que umas palmadinhas nunca fizeram mal, mas não é nada disso.

Se no texto anterior escrevi sobre a dialéctica (conseguida ou não) entre Eu e o Outro, não será particularmente original revisitar essa dialéctica traduzida em Eros. E não estou aqui a falar de um Eros racionalizado, à maneira greco-romana, mas do Eros primordial, de Hesíodo, uma das únicas três forças não geradas do Universo.

É este o Eros que está presente em A history of violence, muito simplesmente, porque é este Eros que está presente em qualquer relação entre o Eu e o Outro. Olhá-la sob a sua influência tutelar dá uma nova (mais uma) visão deste magnífico filme de Cronenberg.

A primeira referência clara ao amor, embora não totalmente explícita, é a cena do hospital, já aqui referida por diversas vezes, em que Tom explica a Edie que, não só matou Joey no deserto, como só começou realmente a viver quando a conheceu. Esta geração do Outro Eu, Tom, mas, sobretudo, o equilíbrio conseguido graças a Edie, é o reino de amor ( isto começa a parecer uma homilia pascal). Cronenberg nunca o mostraria, aliás, o amor em Cronenberg é sempre um amor presumido, impossível de apontar com clareza e objectividade, passível, apenas, de ser deduzido de sexo, violência, carne, morte, religião. Por isso, é de suspeitar, quando todos os típicos elementos cronenberguianos se reúnem num único filme, se não estaremos perante o 5º elemento.

O amor em A history of violence é, antes de mais, o amor de Tom Stall por tudo o que o rodeia. No princípio do filme a personagem de Viggo Mortensen fez-me lembrar o Private Witt, a personagem de James Caviezel, em The Thin Red Line, pelo olhar, meio perdido, meio deslumbrado, com que ambos olham para as simples coisas que o rodeiam. Aquele olhar inocente, que parece estar sempre a ver pela primeira vez a beleza e a bondade das coisas. Witt, os indígenas e as florestas do Pacífico; Stall, a sua família, as caminhos e os clientes do diner de Indiana. Ambos são assassinos, são capazes de matar. E ambos o fazem com um estranho à-vontade, quando confrontado com o que sabemos e vemos deles. Se o caso de Witt não tem aqui lugar de análise (fica para outro dia) já o caso de Jack Stall tem duas leituras interessantes.

Em primeiro lugar, Tom é o amor por oposição a Joey que é a violência, a indiciar uma ausência de amor (que não sabemos mas presumimos). Assim, quando algo mata Joey e gera Tom, é a violência que é morta e o amor que nasce. Tom torna-se o anti-Joey. E todo o filme comprova isso, quer quando Tom Stall tem reacções bondosas e compreensivas à violência ao seu redor, para com o filho, por exemplo, quer quando, pelo contrário, a violência irrompe em si (em Joey, diríamos), como, por exemplo, na bofetada que dá ao filho (ou, sim, na cena da escada).
No filme a morte da violência e o amor - o mesmo - têm um nome, aliás, nomeado por Tom - Edie. E isso contribui muito para convocar a ideia de amor à Eros, a noção primordial de equilíbrio cósmico fundamental, Deus Todo Poderoso, Neutro, ao qual Bem e Mal prestam vassalagem. Porque o Eros não resolve a questão, não vem como grande Paladino do Bem, para salvar tudo e todos. Ele ajudou na transição entre Joey e Tom, entre a violência e a bondade mas é ele também que permite o regresso da violência. Mesmo se o regresso da violência parece (nunca Cronenberg nos deixa chegar a essa conclusão pois termina o filme antes disso) servir para repor a bondade e o amor que preenchiam a vida de Tom. Eros equilibra e desequilibra segundo os seus misteriosos desígnios. E, em A history of violence, Joey, Tom e Edie (mas também os filhos e a restante comunidade em que se insere) são os elementos desse amor, que é simultaneamente violência e bondade.
DM

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