A history of violence (I) - Passeios pelos bosques da ficção

sull'ombra di Umberto Eco

O espectador não está inocente quando entra na sala de cinema. Pode não saber quem é Cronenberg - e não ter por isso essa preparação - pode não ter lido a History of violence, de John Wagner, mas conhecerá, seguramente, o título do filme para o qual saiu de casa, comprou bilhete e se sentou na cadeira. E, claro, Cronenberg sabe isso, sabe que isso já é saber muito e começa por aí.

Quando vamos para um filme intitulado Uma história de violência creio que é seguro dizer que se espera violência. Cronenberg começa por jogar com essa expectativa. O início do filme é lento, lentíssimo. O primeiro diálogo, vagoroso, pesado, inaugura a toada da primeira parte do filme: a paz podre da violência física, fria, por vezes, latente apenas, invisível ainda, mas aproximando-se - é isso que Cronenberg nos quer fazer crer. Há uma contenção, uma cenografia de rigor: os maus, depois os bons - primeiro com uma família, a de Stall, depois com uma pacata cidadezinha. Mas, por isso mesmo, sabendo que estamos numa história de violência, começa a pesar-nos o incómodo, primeiro, a ansiedade, depois. Something is not quite right: as mortes brutais do início, tratadas de um modo acessório mas definitivo, a agressividade dos adolescentes a seguir ao treino de baseball.

Até então todos os fotogramas são pesados, contidos, medidos, pensados. O ritmo brando, de tal modo que se começa a sentir o batimento cardíaco, um burburinho inaudível apodera-se de nós, rodeia-nos: sabemos que algo está mal, algo está prestes a acontecer. Algo vai acontecer. O filme é físico, plástico mas, para nós, espectadores, é psicológico, torturante. Aqui está o primeiro Cronenberg: a calma e o prazer de quem olha o desenrolar dos acontecimentos, o voyeurismo de quem os apresenta ao espectador revelando tanto quanto oculta, medindo o efeito que espera provocar, chamando a ansiedade, os esquecimentos, as pulsões.

Depois,

There's something happening here.
What it is ain't exactly clear.
There's a man with a gun over there,
Telling me I got to beware.
I think it's time we stop, children, what's that sound?
Everybody look what's going down.
(Stephen Stills)

a violência explicita-se na sua forma mais brutal: o bom, o pacato, o homem de família, meio aparvalhado, pensamos até - lembre-se a cena em que a mulher de Stall aparece vestida de cheerleader e o ar surpreso de Tom - torna-se um assassino. Em legítima defesa, heróica.

Daí em diante a violência explícita não mais deixará de conviver com o espectador e a violência psicológica, assim resolvida, cede o seu lugar aos dilemas psicológicos: é um passeio por outro bosque da ficção. Não se trata agora de manipular a iminência da violência, com toda uma linguagem, uma forma próprias, trata-se de, através dela, colocar problemas morais e desenterrar tensões psíquicas. A violência, passe o paradoxo, passa de latente mas (e por isso) sufocante para explícita e (mas) acessória, a culminar no final operático em que é já uma caricatura da violência aquilo a que assistimos, uma violência despojada de conteúdo ou em que o conteúdo é dado pela forma. Uma fusão a que se poderia chamar o cliché da violência pela violência. Apenas para percebermos, na cena final, que não, que a violência - final - é a que tem mais sentido. Mas isso é matéria para mais tarde.

Antes disto - último passeio por outro bosque da ficção - deixámos Tom Stall confrontado com a sua condição heróica, exponenciada pelo meio em que vive, onde o acto de violência e a resposta a ela são excepções fracturantes do quotidiano tranquilo da Indiana profunda. O ensaio por este tema dura pouco. Dir-se-ia ser apenas para descansar o espectador. Mas não por muito tempo, pois novo tema nos é insinuado por Cronenberg, o da violência hereditária, pela mão do filho de Tom, a cruzar-se com o início de (mais) outro passeio por um bosque da ficção, para mim o mais magnífico de todos, o da exposição e confronto dos Outros. Outros entre si, outros Eus, onde Cronenberg volta, à vontade, a um tema da sua obra, nem sempre recordado como merece, o do dionisismo - ou, sendo menos tendencioso - o da alteridade (quase ipseidade, à maneira da Lévinas). E aí vale tudo, como se percebe, por algumas das melhores cenas do filme, a começar, justamente, como indiciei acima, no abraço do pai e do filho, após uma carnificina (mas também um vida salva).

Isto vai longo e eu ainda escreverei muito sobre A history of violence. Por agora fiquemos por aqui.
DM

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