A history of violence (VII) - O Outro

Este texto poderia ter igualmente como título: alteridade, ipseidade, dionisismo. Qualquer uma destas palavras será reutilizada ao longo das próximas linhas para chegar ao Outro.

Uma das cenas que mais senti, ainda na sala, foi a do diálogo(mais solilóquio até) entre Tom e a mulher, no hospital, depois da carnificina à porta de casa, em que Tom é alvejado num ombro e depois salvo pelo filho. Aí, tornada evidente a history of violence de Tom, ou, pelo menos, a sua experience with violence, Tom é confrontado pela mulher com A mentira, que seria, afinal, toda a sua vida com o marido, descoberto pessoa diferente. É nesta cena que, como referi há uns textos atrás, Tom explica ter morto Joey no deserto. Mas é também aqui que se dá uma das chaves do filme. Tom não se limita a dizer que matou Joey no deserto. Não. Ele acrescenta que foi só quando conheceu Edie que verdadeiramente se salvou. Ora, aqui, temos duas hipóteses, aliás, perfeitamente cumulativas: foi o Amor que o salvou, foi o Outro que o salvou. A primeira hipótese fica para outro texto. A mim interessa-me o papel do Outro nesta history of violence e esta cena parece-me ideal para começar a discussão.

O primeiro par Eu-Outro do filme é Tom-Edie. Só mais tarde nos surge o par, mais complexo, que há-de conflituar (e [des]construir-se) com esse: Tom-Joey. Mas há ainda mais um Eu-Outro interessante mas mais suave: Jack Stall-Bobby Jordan. E há, também (a merecer texto autónomo) a inversão do primeiro par, por breves instantes, numas escadas: Edie-Tom.

São choques, confrontos, buscas, descobertas, conflitos entre o Eu e o Outro suficientes para podermos pensar que Cronenberg sabia o que estava a fazer: há aqui uma das marcas típicas do dionisismo(e não falo da loucura), a procura da alteridade ou, se se preferir, da ipseidade.

O par Jack-Bobby é o confronto de um Eu violento mas reprimido com um Outro que o inverte, aparentando violência expansiva mas reprimindo fraqueza. Sendo o par menos rico e profundo não deixa de conter dois elementos interessantes: o primeiro, já referido, o da hereditariedade da violência; mas, também, um segundo elemento de processualização do despontar da violência através da violência. Sendo interessante notar que a violência que desponta em Jack é um violência reprimida, contida e profunda, despoletada pelo bullying de Bobby. Ora, o bullying é sempre aparente, violência oca e balofa, que não resiste ao confronto. Há aqui, pois, uma lição em violência, mostrando-se que a violência aparente esconde mas potencia a violência enraivecida, normalmente oculta, à espera de expressão.

No entanto, é entre Tom-Edie e Tom-Joey que o confronto Eu-Outro se revela, tornando-se umas das mais importantes componentes de A history of violence. Curiosamente, por um breve momento (não, ainda não vou falar da cena das escadas) há uma inversão do par original e é Edie-Tom que ocupa todo o ecrã (a merecer, como já disse, texto autónomo).

O confronto Tom-Edie só se explicita a partir da cena que refiro no princípio do texto. Até ao momento da conversa no hospital, o par Tom-Edie não convoca qualquer questão Eu-Outro para além da normal interacção de um casal feliz e banal. Mas, a partir da cena do hospital, com Tom a dizer que só graças a Edie se conseguiu salvar, tudo muda. De repente há um Eu que se assume permitido pelo Outro. É verdade que a cena em questão é lamechas e sentimentalóide e Cronenberg joga com isso mesmo, desmontando-a, ao fazer Edie reagir à revelação de Tom, saindo, furiosa, quarto fora. Enter Lévinas e a sua ipseidade (e com isto lá se vão os poucos leitores que resistiram até aqui). O que temos aqui é a construção de um eu com recurso e por confronto ao Outro, em que um novo Eu, Tom, se constitui moralmente por relação a um Outro, Edie (que é, simultaneamente, mulher, mãe, casa e comunidade). É interessante ver que Tom, não sendo passivo, nunca aparece numa posição de possessão de Edie, enquanto Outro (sim, nem mesmo na cena das escadas). A poder falar-se de algo, seria de um alheamento, melhor, serenidade, mas que era partilhada por ambos. Tom não quer por isso perder-se no outro ou possuir o Outro, não é uma questão de alteridade mas verdadeiramente de construir-se pelo Outro, uma questão de ipseidade.

Esta busca pelo Outro assume contornos dionisíacos, de alteridade, no par Joey-Tom. Aqui há um ritual de passagem, permitido, como vimos por Edie, que mata Joey para fazer nascer um Outro, Jack Stall. É um processo misterioso e iniciático, onde se cruzam as referências com o deserto, o passado de violência e, depois, a pequena cidade de Indiana, a mulher, os filhos, o emprego pacato num diner. Aliás, essa pacatez estranha, um contentamento com uma vida simples, ganha profundidade quando se percebe que é uma oposição total, uma acalmia terapêutica, para a history of violence. O ressurrecto Tom fez o seu caminho, curou-se da violência, tornou-se Outro. Até perceber, com a reentrada da violência na sua vida, que a cura só dura até à recaída. E é através de um paradoxo (de novo, o reino de Diónisos) que ele tenta resolver e manter a estabilidade do Eu-Outro que tinha conseguido com a passagem de Joey a Tom: num percurso, lento e conflituoso, de regresso a Joey, a culminar na mansão do irmão, Tom é salvo por aquele que matou (ou talvez Joey se tivesse suicidado no deserto e Tom só tenha aparecido com Edie) e Joey, um derradeiro Eu, cede o seu lugar para Tom, que de Outro, no regresso a casa, tem caminho aberto para ser um Eu único, cujo Outro pode agora ser, completamente, Edie.
DM

Comentários

Barreira Invisível Podcast