tudo isto existe; tudo isto é triste; tudo isto é soul


PRECIOUS

De: Lee Daniels

Com: Gabourey Sidibe, Mo’nique, Paula Patton

“Precious” é um pesadelo, mas um pesadelo que queremos olhar até ao fim. E, algures por aqui, reside a maior proeza do trabalho do realizador Lee Daniels e do argumentista Geoffrey Fletcher: conseguir fazer um filme cheio de dor e de monstros, mas tão autêntico na sua esperança que não nos arrasa; fortalece. Porque Precious, a rapariga do título e que sofre toda a espécie de injustiça, não é miserável. Porque o filme não é miserabilista nem demagógico. É uma pedra. Uno, sólido e duro como uma pedra. Que pode ser uma arma cruel ou o princípio de uma construção – como uma pedra.

“Precious” adapta “Push”, o único romance da poetisa e performer Sapphire – que, de resto, surge brevemente no filme. É o relato contundente de uma adolescente do Harlem que foi, desde criança, sucessivamente violada pelo pai, com a complacência da mãe, e que vai ser afastada da escola, agora que está grávida pela segunda vez. A mãe, que se sustenta com o dinheiro que a assistência social entrega para a criação do neto, vive no sofá, em frente à televisão, enquanto fuma e escraviza Precious, que é obesa, quase analfabeta e motivo de chacota na rua. Mas a obesidade disforme de Precious é mais que a gordura e a gravidez; é tudo o que está lá dentro – a dor, a raiva, a força, o desejo. Agora, enquanto espera o filho de modo quase banal e sobrevive à mãe, Precious é conduzida a uma escola alternativa que ensina miúdos crescidos a ler e a escrever. Pelo meio, escapa da realidade com sonhos que tem acordada: vê-se como uma estrela, amada e admirada. Doutras vezes, olha-se ao espelho e o reflexo é o de uma rapariga loura, bonita. Tudo isto podia ser terrivelmente moralista? Podia. Mas não é. Nem por um instante. Precious nunca chora. E não é líquido que não goste de ser quem é.

“Precious” saltou para as bocas do mundo quando chegou, o ano passado, ao Festival de Sundance; gozou da promoção de Oprah Winfrey e aterra, muito merecidamente, nos Óscares com seis nomeações: melhor filme, melhor realizador, melhor argumento adaptado, melhor montagem, melhor actriz principal (Gabourey Sidibe) e melhor actriz secundária (Mo’nique). Mas é pena que a Academia não contemple um prémio que outros círculos atribuem: o de melhor “ensemble”, digamos, o de melhor elenco, melhor conjunto de actores, porque iria direitinho para “Precious”. Da fenomenal estreante Gabourey Sidibe, que nasceu para ser Precious, à monumental Mo’nique, a mãe monstruosa, passando pelas surpreendentes e discretas participações de Lenny Kravitz como enfermeiro e, sobretudo, Mariah Carey como assistente social, e pela turma de raparigas com que Precious estuda, e ainda por Miss Blu Rain, a professora e absolutamente linda Paula Patton – esqueçam Halle Berry – todo o leque de actores se encontra em estado de graça.

Filmado em apenas cinco semanas e com um realizador que dirige apenas a sua segunda longa e um argumentista, ao que parece, debutante, “Precious” é, aliás, no todo, um caso notável de pontaria. Um filme negro, quase integralmente feito por negros, mas sem o panfletarismo de Spike Lee; só a força negra, a mesma força do blues ou do jazz ou do soul. Gere com classe os momentos de dor e os prenúncios de esperança. Não explora nem tenta chocar. Avança como quem tem de levar a vida para a frente. Como Precious. E só nos vai passando a informação na medida certa, para que a história se cumpra no final e nos desarme.

Único reparo: no fim, o ecrã projecta a dedicatória “Para todas as raparigas ‘Precious’ do mundo” ou algo mais ou menos assim. Não era preciso. Nós perceberíamos. Elas saberiam.

AB

i, 2010.02.11

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