o sentimento de um (outro) ocidental


TUDO PODE DAR CERTO

De: Woody Allen

Com: Larry David, Evan Rachel Wood, Patricia Clarkson

“Para que é que quer ouvir a minha história? Nós conhecemo-nos? Gostamos um do outro? Deixe-me esclarecê-lo já… Eu não sou um tipo simpático. O charme nunca foi uma prioridade para mim. E, só para que saiba, este não é o “feel good movie” do ano. Portanto, se for um daqueles idiotas que precisa de se sentir bem, vá fazer uma massagem aos pés.”

É mais ou menos nestes termos que Boris Yellnikoff se dirige a si logo nos primeiros minutos de filme. Sim, a si, o espectador. Olha-o nos olhos e começa a disparar todo o seu pessimismo, egocentrismo, relativismo, amargura, certezas absolutas, tudo o que tem. E sabe deliciosamente. Sabe deliciosamente porque é Woody Allen puro, o bobo e o sábio a um tempo só, de regresso a casa. A Nova Iorque, ao seu cinema, à sua filosofia, aos seus sapatos. E é tão óbvio que está a gozar o conforto de tudo isto. Vamos lá: estamos a falar dum homem que passa as noites de sábado sempre a fazer a mesma coisa no mesmo sítio – a tocar clarinete no clube. Que faz religiosamente um filme por um ano. Que usa a mesma ficha técnica em todos os filmes. Woody é um conservador – a revolução não lhe fica bem. Ainda bem que deixou – por agora – as aventuras europeias, as cidades que nunca poderia conhecer como Nova Iorque. Se conhecesse, é porque algo estaria mal.

E sabe deliciosamente – voltando à abertura do filme – ainda por outra razão: porque Boris Yellnikoff é Larry David. Há anos que Woody Allen vai procurando quem faça dele. Umas vezes funciona brilhantemente – John Cusack em “Balas Sobre A Broadway” – outras nem por isso – Kenneth Branagh em “Celebridades”. Aqui, sai melhor que a encomenda. Porque Boris não é Woody Allen feito por outro actor; é Woody Allen feito por Larry David. Que se poderia pedir mais? E, se Larry David é, naturalmente, um actor com limitações (rigidez física, uma paleta emocional que varia entre o irritado e o fulo), dá-lhe um peso, uma agressividade, um punch de que o original nunca seria, provavelmente, capaz.

E quem é Boris Yellnikoff? É todo o filme. É um génio que chegou a ser falado para o Nobel da Física e acabou um velho rezingão que monologa sobre as suas manias contra as manias do mundo. É um misantropo, hipocondríaco, céptico, que desfila os seus pensamentos sobre o amor, o sexo, a religião, a sociedade contemporânea, as manias da saúde, da ecologia, as mulheres, as relações, a falta de sentido da vida, a imprensa, o pensamento único, etc, etc, etc.

O texto, consta, foi escrito para Zero Mostel, mas, quando este morreu, em 77, Allen mandou-o para a gaveta. Obrigado a parar pela greve dos argumentistas, tê-lo-á ido buscar ao móvel. Em boa hora. Há coisas que não são por acaso, ainda que Boris talvez não concordasse, certo de que a sorte determina boa parte da nossa vida, a começar pela forma como aquele espermatozóide específico encontrou aquele óvulo que deu origem exactamente àquilo que você é, caro espectador/leitor.

O resto do filme é apenas simpático e acontece distribuído em cenas convencionais, encaixadas entre as várias secções do monólogo de Boris. É a história que ele viveu com Melody, uma jovem ingénua que veio do Mississipi tentar a sorte em Nova Iorque e acabou à porta dele. Distantes na idade, na cultura e em tudo o resto, vão-se aproximando e ela vai-se tornando mais bela, ao mesmo tempo, aos olhos de Boris e aos nossos próprios, até que ele, inevitavelmente, se apaixone.

Apesar do que ele lhe possa dizer, vá ouvir a história de Boris Yellnikoff. Já não é assim tão habitual ver um Woody Allen tão Woody Allen. Tão Larry David.

AB

i, 2010.02.04

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